Rainha do Congo de MG escreve para Papa e pede fim da discriminação nas igrejas

Rainha do Congo de MG escreve para Papa e pede fim da discriminação nas igrejas
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Isabel Gasparino defende direito de que povo de cultura africana louve à Nossa Senhora do Rosário nos templos católicos conforme sua tradição

Por Juliana Siqueira

Poder louvar à Nossa Senhora do Rosário sem amarras, conforme as tradições africanas, com total acesso aos templos católicos e sem quaisquer tipos de discriminação. Foi com esses ideais em mente que a Rainha do Congo do Reinado Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário e Rainha do Congo do Estado de Minas Gerais, Isabel Gasparino, escreveu uma carta para o Papa Francisco, no início deste mês, solicitando a revogação de um aviso pastoral, do início do século passado, que proíbe os festejos do Reinado nas igrejas. Ainda não houve resposta do Vaticano.

Na carta, a Rainha Isabel Gasparino destaca que, em 1923, ao assumir a Arquidiocese de Belo Horizonte, Dom Antônio dos Santos Cabral publicou o Aviso Pastoral nº 5, que trata da proibição. Ainda conforme o conteúdo escrito por ela, a proibição foi reiterada em 1927 por meio de uma Carta Pastoral. Posteriormente, as  “Constituições Sinodais do Primeiro Sínodo da Arquidiocese de Belo Horizonte”, em 1944, foram promulgadas. Apesar de os documentos serem antigos, a Rainha Isabel destaca que muitas igrejas católicas, ainda hoje, não permitem que o povo de cultura africana adentre os templos, mesmo que respeitosamente, para louvar à Nossa Senhora do Rosário, conforme sua cultura.

O povo africano, trazido escravizado para o Brasil, tem sua própria festa. Foram várias as lutas para que os negros pudessem entrar na igreja, louvar à Santa Manganá (Nossa Senhora do Rosário). Houve luta para que pudessem entrar com seus instrumentos, para que seus instrumentos pudessem soar e ressoar na casa sagrada. Mas ainda existe o preconceito com o povo do Rosário. Ainda há aqueles que querem separar as pessoas, que acham que Deus é só deles“, diz a Rainha Isabel Gasparino.

Conforme a Rainha Isabel, a busca é pelo direito de entrar na igreja e homenagear Nossa Senhora do Rosário, sem precisar fazê-lo conforme a cultura europeia. “Entramos na casa sagrada com muito respeito, fazendo o festejo que a gente sabe fazer, do jeito africano“, afirma ela, que salienta que Nossa Senhora do Rosário é mãe de todos.

Na carta escrita ao Papa, a Rainha Isabel Gasparino também destaca as questões raciais que envolvem o assunto. “Vivemos em uma sociedade em que impera a discriminação e o racismo estrutural, que tem em sua base o racismo religioso. A discriminação para com nosso povo é traduzida em atos racistas, que violam nossos direitos como cidadãos do bem, cidadãos imbuídos do espírito da fraternidade, esse sim um valor a ser difundido prosperamente“, afirma o conteúdo.

A Rainha Isabel Gasparino ainda pede a revogação de alguns dos escritos de Papa Nicolau V. “Na Santa Igreja, não deveria mais haver, assim, posicionamentos tais como aqueles de Papa Nicolau V que legitimou a escravização de nossos ancestrais africanos, como prescrito na Bula Papal “Romanus Pontifex”, do século XV. Urge também sua revogação”, diz o conteúdo.

Em nota, a Arquidiocese de Belo Horizonte destacou que “a presença de grupos de congado e outras expressões da religiosidade popular, com raízes na cultura de matriz africana, já faz parte do cotidiano das celebrações na Arquidiocese de Belo Horizonte há muitos anos“.

Leia a nota da Arquidiocese na íntegra

A presença de grupos de congado e outras expressões da religiosidade popular, com raízes na cultura de matriz africana, já faz parte do cotidiano das celebrações na Arquidiocese de Belo Horizonte há muitos anos.

O documento que rege os trabalhos de evangelização da Arquidiocese na contemporaneidade, de título Proclamar a Palavra, em sua página 14, assim orienta: “Valorizar a religiosidade popular no processo de evangelização, sobretudo, nas cidades históricas, santuários, comunidades quilombolas e nas famílias, como um caminho para aprofundar a fé, iluminado pela Palavra de Deus, com vistas à pertença e à participação na comunidade eclesial”.

Importante lembrar que, no dia 25 de fevereiro de 2019, foi criado, na Arquidiocese de Belo Horizonte, o Santuário Arquidiocesano Nossa Senhora do Rosário, em Brumadinho. Uma homenagem aos muitos grupos representantes da cultura de matriz africana que se reúnem para reverenciar Nossa Senhora do Rosário, em todo o Vale do Paraopeba. A Catedral Cristo Rei, Igreja Matriz da Arquidiocese, no seu conjunto arquitetônico, terá o Museu Minas Negra Brasil, com o propósito de narrar a importância da população afrodescendente na configuração da cultura mineira e da fé cristã católica no Estado.

Agora, no fim de setembro e início de outubro, teremos a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Lagoa Santa, com a presença das guardas de congado em todas as celebrações. As festividades começam no dia 30 de setembro e serão concluídas no dia 9 de outubro.  Esses exemplos, dentre tantos outros, mostram que a fé cristã católica testemunha a inclusão, todos unidos formando um só povo: o Povo de Deus.

Leia a carta de Isabel Gasparino ao papa na íntegra

A Sua Santidade, o Papa Francisco,

Salve Maria!

Com minhas cordiais saudações, permito-me dirigir-me a Sua Santidade para solicitar-lhe auxílio àqueles que se irmanam na devoção à Nossa Senhora do Rosário, Nossa Santa Manganá, por todo território brasileiro. Herdamos essa fé de nossos ancestrais, transladados forçosamente do continente africano para o Brasil, onde lutamos diuturnamente para manter viva uma tradição que acalenta nossa árdua caminhada em uma sociedade que insiste em discriminar, contrariamente aos mandamentos cristãos que pregam o amor.

Sou Isabel Casimira Gasparino, filha de Isabel Cassimira das Dôres Gasparino e neta de Maria Cassimira das Dôres, que fundou, em 1944, o Reinado Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário, no bairro Concórdia, em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, no Sudeste do Brasil. Estou a frente deste Reinado desde 2015 e, em 2016, fui coroada Rainha do Congo do Estado de Minas Gerais, representando os devotos do Reinado de Nossa Senhora do Rosário em todo este estado.

Posso atestar-lhe, Santo Padre, que não são poucos os devotos de Nossa Senhora do Rosário por aqui. Há pelo menos 701 festas em honra à Virgem do Rosário em Minas Gerais, conforme o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que atualmente desenvolve o processo de patrimonialização do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, não apenas em Minas Gerais, como também no estado de Goiás e São Paulo. Além dessa iniciativa no âmbito nacional, existem outras em instâncias regionais ou locais que visam preservar esse patrimônio, como também outros referentes à devoção à Nossa Senhora do Rosário.

Nesse último caso, vale mencionar o registro como patrimônio imaterial de minha cidade, Belo Horizonte, do “Largo do Rosário”, neste 2022. Eu tive participação ativa em todas as etapas o registro desse importante patrimônio não apenas para os devotos de Nossa Senhora do Rosário, como para toda a população negra belo-horizontina. O “Largo do Rosário” é um lugar de memória, onde havia uma Capela dedicada à Nossa Santa Manganá, erguida pela Irmandade dos Homens Pretos do antigo Arraial do Curral Del Rey. Este arraial foi totalmente destruído, juntamente com a Capela, no fim do século XIX para a construção da atual cidade de Belo Horizonte. No entanto, com a valiosa ajuda do Padre Mauro Luiz da Silva, estamos recuperando essa história para que aquele espaço, que é sagrado para nós, não seja profanado pelo esquecimento. 

Esse reconhecimento não impede, contudo, investidas que intentam criar entraves à nossa devoção. Infelizmente, como disse, vivemos em uma sociedade em que impera a discriminação e o racismo estrutural, que tem em sua base o racismo religioso. A discriminação para com nosso povo é traduzida em atos racistas, que violam nossos direitos como cidadãos do bem, cidadãos imbuídos do espírito da fraternidade, esse sim um valor a ser difundido prosperamente. 

Embora saibamos de todos os esforços de Sua Santidade para que tenhamos uma sociedade justa e igualitária, ainda encontramos, por vezes, dificuldade de diálogo com a Santa Igreja. Nem sempre, somos bem recebidos nos templos católicos para rendermos homenagens a Nossa Senhora do Rosário, nossa mãe protetora, que é a mesma Nossa Senhora, mãe de todo povo católico. Muitas vezes, somos impedidos de entrar nos templos que deveriam ser abertos a todos filhos de fé. A cada ano, quando vamos realizar nossos festejos, temos que negociar com o pároco local para podermos participar da celebração da Santa Missa em honra àquela que é quem mais nos ensina a ética fundada no amor e na bondade.

Esses entraves ocorrem não apenas por motivos que poderiam ser entendidos como de “foro íntimo”, embora o racismo seja da ordem do social, com legislações que, inclusive, punem ações discriminatórias em nosso país. Esses entraves também são balizados por normativas da Santa Igreja que ainda estão em vigor. Posso citar como exemplo um caso específico de nossa cidade. Em 1923, ao assumir a recém-criada Arquidiocese de Belo Horizonte, Dom Antônio dos Santos Cabral publicou o Aviso Pastoral nº 5 que proíbe os festejos do “Reinado”. Tal proibição foi reiterada em 1927 através de uma Carta Pastoral e, posteriormente, houve a promulgação das “Constituições Sinodais do Primeiro Sínodo da Arquidiocese de Belo Horizonte”, em 1944. Esse posicionamento, ao meu ver, não condiz com os movimentos de diálogo que temos percebido ao longo do papado do Santíssimo Padre, nem mesmo com as prerrogativas do Concílio Vaticano II. Não podemos completar cem anos dessa norma em vigor.

Santo Padre, urge a revogação do Aviso número 5, da Carta Pastoral de 1927 e as determinações do Sínodo de 1944, no que se refere à postura da Arquidiocese de Belo Horizonte em relação ao Reinado de Nossa Senhora do Rosário neste território, por se tratarem de documentos que ainda hoje pesam sobre nós, devotos de Nossa Senhora do Rosário, e que sustentam os argumentos daqueles que ainda nos impedem de entrar nas igrejas católicas nesta igreja local.

Com meu sincero respeito, venho solicitar-lhe, em nome dos devotos de Nossa Senhora do Rosário, a Vossa Santa intervenção nesse caso.

Acredito que o caminho para a verdadeira liberdade é capaz de nos salvar das armadilhas impostas pelo ódio que nos impedem de nos congregar para celebrar a boa união. Na Santa Igreja, não deveria mais haver, assim, posicionamentos tais como aqueles de Papa Nicolau V que legitimou a escravização de nossos ancestrais africanos, como prescrito na Bula Papal “Romanus Pontifex”, do século XV. Urge também sua revogação! Essa revogação estaria em consonância com os ditames de uma Igreja, como a dos tempos presentes, que prega a fraternidade e a igualdade. Além disso, trata-se de um ato de reparação para com os povos de África, escravizados em seu próprio continente e nos diversos destinos para onde foram violentamente enviados. Novamente, com meu respeito, permito-me dirigir-me a Sua Santidade para solicitar Vossa Santa intervenção.

Com minhas humildes considerações, registro nesta breve carta apelos de minhas irmãs e de meus irmãos, rogando aos Céus que sejam recebidos pelo Santíssimo Padre, a quem tenho em meus pensamentos também como um irmão, na fé e no exercício diário da prática do amor ao próximo.

Dedico-lhe minhas mais puras preces de paz e de saúde para que Nossa Santa Manganá continue lhe imbuindo das forças que fazem brotar em todos os cantos o verbo esperançar.

Cordialmente,

Publicada originalmente no jornal O Tempo
Foto: Isabel Gasparino/Arquivo Pessoal

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