A superioridade das pessoas magras

A superioridade das pessoas magras
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Você já reparou como são moralmente e fisicamente mais incríveis as pessoas que estão sempre se esforçando para caber?

Por Jéssica Balbino

Pessoas magras são superiores. Sim! Não só moralmente, mas fisicamente. Afinal, se esforçaram (cof! cof!) pelo corpo que possuem. Um corpo magro, distante de qualquer tecido adiposo, sarado, de quem só comeu alimentos saudáveis (risos), malhou e, finalmente, alcançou aquele que é o objeto mais buscado na história da humanidade, a pedra filosofal, a imortalidade!

Sim, caso você não saiba, pessoas magras são imortais. E não, não sou eu quem está dizendo isso. São as próprias pessoas. Basta uma rápida leitura em comentários de internet, sobretudo quando há uma pessoa gorda doente e/ou machucada, essa imortalidade vem à tona e aparece em frases como: “se se cuidasse, não teria caído”, “se fosse uma pessoa magra, não teria se machucado”, “se fosse magra, não teria morrido”, “se fizesse dieta, viveria melhor”. Entre outros exemplos, mais degradantes ou não, mas sempre evidenciando a superioridade, claro.

Logo, não é exagero concluir que pessoas magras são superiores. Comem melhor, dormem melhor. Elas se lançam num estilo de vida melhor. Alguém à sua volta já emagreceu? Percebe a festa que é? Sem falar, claro, na ostentação dos pratos low carb ou das selfies nos aparelhos de ginástica.

Não há nada mais vencedor no mundo do que ex-gordo. Repare como ostentam em suas falas, vestes e posturas o case do vencedor. A jornada do herói completa. A pessoa que vivia em negação em relação à própria saúde, o próprio corpo, os próprios objetivos, mas, um dia acordou, trabalhou duro – no pain, no gain – e se tocou de que a vida só existe pra pessoas magras, então voilà, agora faz parte do seleto grupo de pessoas que se esforçou o suficiente para ser tratada como ser humano. Quanto trabalho, parabéns.

Às pessoas gordas cabe, então, a frustração por não serem tão geneticamente favorecidas – ou tão esforçadas, a ponto de merecerem um tratamento humanizado. Resta lidar com a imortalidade e saúde das pessoas magras esfregadas na cara a cada passo, a cada comentário. Resta ter a existência limitada às justificativas que se vê obrigada a fazer em nome da própria saúde, do próprio trabalho, do autoamor, da busca pelo afeto, etc.

Pessoas magras são infinitamente melhores. E não sou eu que estou dizendo. Elas mesmas proclamam isso. Mas, claro, sempre insatisfeitas. Sempre em dieta, sempre cortando carboidratos, intercalando o chá verde com a cocaína, a tapioca lowcarb com a anfetamina, o pré-treino com a sibutramina e aquele composto pra ansiedade. Nada de farinha branca, que é o que faz mal. Açúcar é a nova droga, não sabia? Tão viciante quanto … bom, deixa pra lá. O que importa mesmo é perder os quilos a mais – sempre existem, vai.

É impossível alguém ser feliz num corpo gordo, dizem os magros, do alto da sua superioridade, ossos aparecendo, abdômen definido e a saúde nos trinques. Quem aqui já viu uma pessoa magra no médico? Você não sabia que elas não adoecem?! Nem gripe, nem COVID-19, nem cólica nos rins. Doenças são inerentes apenas às pessoas gordas. Gente magra não adoece. Não vai ao médico. o SUS, bem como os convênios, são exclusivos de pessoas gordas. Já viu gente magra usando serviço de saúde? Du-vi-do. Gente magra não sente dor.

Gente magra não cai. É amada. É desejada. É competente. Não passa do ponto. Não erra. Já viu algum magro errar? Impossível. Gente magra é o acerto da humanidade. Aliás, gente magra é a humanidade. Gente gorda é que tem que se haver com tudo que falta, ou sobra, no caso. 

Gente gorda que lide com o que chamam de comorbidade, que enfrentem a fúria da superioridade magra, que seja escorraçada do laço social por não atender ao padrão, ou, por simplesmente, ameaçar a norma posta. 

Já imaginou como é difícil pra pessoa magra ver gente gorda existindo? Gente gorda funciona como um lembrete de que nem tudo é ‘perfeito’. De que se não houver esforço, haverá fracasso (já escrevi sobre isso nessa coluna), de que existe outro jeito de viver a vida e ele não passa por agradar o que dizem ser a única via. Mas, quem é que quer experimentar?

[Pessoas gordas] postam fotos em praias paradisíacas e se dizem felizes, mas quem é que acredita?

Pessoas gordas são as famosas loosers e ninguém quer ser como elas. Elas postam fotos em praias paradisíacas e se dizem felizes, mas quem é que acredita? Como se fosse possível ser feliz num corpo fora do padrão. E, claro, pessoas magras precisam então, não só se esforçarem para ser quem são – “perfeitas”- mas pra lembrar as pessoas gordas do quão erradas elas são. Do quanto a existência delas bagunça a ordem natural das coisas. Do quanto elas devem se envergonhar por ser quem são. Afinal, nem tudo é uma questão de estética, mas de saúde. 

Você já viu gente magra se acidentar? Precisar de sangue? Sofrer com um câncer? Não existe. Isso é uma exclusividade de gente doente e só gente gorda é doente. Só gente que não se esforçou o suficiente. Que comeu muito. Que ficou com a bunda pregada no sofá fazendo nada. Gente gorda nem deveria existir. Quando elas existem, ou se esforçam pra tal e conseguem romper com tudo isso que é dito, funcionam como um lembrete vivo – e grande, gordo, redondo, rechonchudo – de que nem tudo é tão linear assim. De que nem tudo é tão magro. Nem tudo é tão provido de superioridade, moral e caráter quanto alguém que tá ali, se desdobrando a vida toda pra perder 2 kgs, 20 kgs, 60 kgs.

Pessoas gordas devem saber que, caso não consigam emagrecer, existe uma cirurgia pra isso. E o SUS faz. Com o dinheiro pago pelas pessoas magras, afinal, gente gorda mal consegue trabalhar, não é mesmo? É só fazer uma bariátrica que passa. Mas não, pessoas gordas ficam por aí, se vitimizando. Cheias de banha e ‘mimimi’, dizendo que a sociedade não as aceita.

Mas e dieta, quem quer fazer? E academia, quem vai? Só as pessoas magras. Ou as ex-gordas, que acordaram pra vida, se amaram e agora, podem também desfrutar de uma existência plena no mundo. Já as que não estão dispostas a sofrer para terem o corpo que magros sofreram – ou foram abençoados geneticamente – pra ter, que paguem o preço de uma existência miserável – e as pessoas magras vão rir sim.

Tal qual manequins de loja, vão exibir suas medidas finas.  Vão debochar. Vão falar. Vão fazer discurso retórico pra fingir que é preocupação com a saúde, mas é só gordofobia e opressão mesmo. E, às pessoas gordas só restará, então, a ironia. Quanto a mim, me recuso a existir num mundo assim e crio o meu próprio. Nele, as pessoas magras são perfeitas e as gordas, são só pessoas. Que delícia que é!

Publicado originalmente no jornal Estado de Minas
Foto: Paulo Tothy/Divulgação

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