Gordas (também) amam e gozam
Mulheres superam a gordofobia e mostram que o amor e o prazer não se medem por IMC
Por Elisa Soupin
Por volta dos 20 anos, eu, que sou lésbica, vivi meu primeiro relacionamento amoroso sério com uma mulher. Foram quase 2 anos, entre muitas idas e vindas, bem conturbado. Hoje, 11 anos depois, essa relação teria sido chamado de abusiva, mas, à época, eu nem conhecia essa terminologia. O que eu vejo com muita clareza, uma década depois, é como aquela relação foi permeada por outro termo que eu também não conhecia lá em 2010: a gordofobia.
Eu sempre fui gorda. Ou gordinha. Ou fofinha. Tive fases magras, mas no geral sou gorda desde a infância. E sempre fui vaidosa e cheirosa. Então me surpreendi quando, em um dos términos desse relacionamento que vivi, ela disse que perceber o fato de que eu não me cuidava muito fez com que ela não quisesse estar comigo. Não que pessoas não vaidosas não possam se cuidar de outras formas, mas aquela fala não fazia sentido. Assim como não fazia muito sentido em dois anos de relacionamento, eu não ter sido apresentada a nenhum amigo dela (à exceção de uma que também era gorda).
Voltamos a namorar pouco tempo depois desse término. Eu era muito apaixonada e o sexo com essa ex-namorada se tornou um suplício. Eu queria compensar na cama, de qualquer jeito, o fato de ser gorda. E fazia coisas que não me deixavam confortável nem muito menos eram prazerosas para mim. Sempre encolhendo a barriga. De preferência, de luz apagada.
Hoje entendo que aquele “não me cuidar muito” ao qual ela se referiu tinha a ver com não ser magra e ousar ser feliz com meu corpo. Com o fim desse relacionamento, o passar do tempo, a maturidade, discussões propostas nos últimos anos e a troca com outras mulheres gordas, assim como eu, vi que aquele comportamento afetivo/sexual era um padrão, vivido por muitas. A história de mulheres gordas e suas relações narradas a seguir são inspirações que mostram que o amor não se mede por IMC.
Um casalzão que não passa despercebido
A blogueira, youtuber e influenciadora Ju Romano e o namorado, Junão, ambos de 31 anos, são gordos e namoram há 3 anos. E eles não passam despercebidos. Ela é super estilosa e, ainda por cima, os dois amam combinar lookinho. Ou seja: “Não tem um lugar em que a gente entre que todo mundo não pare para olhar para gente. Junão tem 1,92 e eu sempre me visto muito diferente. Às vezes tem olhares de julgamento, preconceito. Mas acho que muitas vezes olham para a gente e pensam: que casal bonito. Eu fico com esses olhares”, diz Ju.
Os dois, que se conheceram jogando futebol americano (“eu achei ele um chato no começo”), ela no time feminino e ele no masculino. São bem-humorados, divertidos e têm a autoestima no lugar. O que facilita a relação com o próprio corpo e com o corpo do parceiro.
“Se você soubesse a maciez que é o Junão! Eu nunca tinha transado com alguém que tenha barriga mas quando a gente foi transar a primeira vez eu nem reparei! O tesão é uma categoria acima, quando gente está com tesão não repara em certas coisas. Agora, o sexo exige sim um pouco mais de elasticidade, mas acho que não tem a ver com ele ser gordo e sim por ele ser muito grande e eu pequena”, diz Ju.
Junão conta que antes de Ju, seus outros relacionamentos eram com mulheres mais perto dos padrões. “Minhas namoradas sempre foram magras, e acho que eu por ser homem, mais novo, talvez inconscientemente procurasse essas mulheres mais dentro do padrão, meio que pra me afirmar. Mas como homem, eu não vivia tanto problema. Tipo, meus sogros achavam que a filha estava protegida”, diz ele.
“A nossa sociedade é patriarcal, e a cobrança e de beleza e de corpo são muito mais fortes, A mulher gorda vai acabar sofrendo mais que os homens gordos”, afirma Maria Luiza Gimenez, acadêmica que teve como tese de doutorado “Lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos”.
Mesmo tranquilos e felizes com o próprio corpo, o casal não escapa de passar por situações desagradáveis.
“Ano passado, a gente foi entrar numa academia meio familiar – procuramos bastante antes de escolher uma, por causa da gordofobia. Quando a gente entrou no volêi, ninguém disse nada, mas a galera olhou torto tipo: ‘esses dois não devem jogar nada’ só que a gente joga super bem e as pessoas ficam chocadas por verem pessoas gordas com bom desempenho”, contam eles. Na internet, cada vídeo postado por Ju, sobre qualquer assunto, vem com comentários gordofóbicos. “Falam: ‘Nossa, essa cama precisa ser de aço, não dá para vocês transarem que o vizinho ouve’. E não, nossa cama é normal, nossa vida também”, diz.
Ser gordo e namorar uma pessoa gorda tem vantagens. “Acho que a gente dá muita esperança de que é possível ter um relacionamento gordo e saudável. Como o Junão é meu primeiro namorado gordo, tem uma coisa que eu nunca tinha experimentado na vida: alguém que entenda tão bem como eu me sinto nos lugares. Com um magro eu teria que explicar e talvez ele nem notasse. Com ele, a gente sabe que a gordofobia é real, e está aí lutando contra isso”, diz ela.
Natália, João e o amor em desconstrução
A gordofobia dentro da própria casa sempre foi uma experiência vivida pela estilista Natália Moretz-Sohn, de 31 anos. “Sempre tive a autoestima boa, sempre que alguém no colégio não queria ficar comigo, eu pensava: ele que tá perdendo”, conta ela, que, mesmo assim, já considerou fazer a cirurgia bariátrica por conta da pressão familiar para emagrecer. Com um ex-namorado, chegou a ter um limite de peso imposto pelo cara para que ele continuasse se relacionando com ela.
Oito anos atrás, Natália ficou com o designer João Suprani, hoje com 31 anos, em uma festa. O lance virou romance e os dois estão juntos até hoje. Nesse tempo, Natália engordou. “Na época que eu conheci o João, estava em um período bem mais magra, tomando remédio e não queria mais tomar remédio, porque eu passava mal com qualquer coisa. Depois de começarmos a namorar, eu engordei e, sinceramente, ser gorda não era um problema para mim. Era mais uma questão estética pelos meus pais. Eu me sinto bem com meu corpo hoje, tenho incômodos como todo mundo, mas gosto do meu corpo”, conta ela, que tem no namorado um apoiador, mas o processo dele em namorar uma mulher gorda não foi tão simples.
“A gente se dava muito bem e tinha muita conexão. Temos, aliás. E eu fiquei com a Nat em um momento em que estava ficando um pouco mais claro para mim que eu me atraía pelo tipo físico de mulheres gordas. Claro, rola aquela pressão e zoação dos amigos, mas eu me via pronto para bancar aquela relação e o tipo físico que me atrai”, diz.
Muitas situações desagradáveis já aconteceram. Em uma festa, Natália ouviu um grupo de amigas comentar “inacreditável esse cara estar com essa garota”, em tom de menosprezo. Em outra situação, ela estava no banheiro de uma noitada e uma menina disse “Não sei como aquele cara quer ficar com você”. As situações a magoaram.
Para João, que antes ouvia falas gordofóbicas dos amigos, mas não falava nada, a coisa também mudou. “Hoje eu já rebato. Tenho um círculo de amigos que evoluiu e se desconstruiu muito ao longo de poucos anos e eu vejo que, apesar de fazerem reflexões, não ficam com mulheres gordas. Falam que é uma questão de gosto, e é difícil debater, mas o gosto é uma construção social, né? Acho que se o homem sente atração por mulheres gordas e é zoado pelos amigos, deve bancar o que gosta”, opina João.
E quanto ao sexo, os dois vão muito bem, obrigado. “É um tipo físico que me interessa, então nunca foi um problema. E é uma relação que vai além do sexo, de conexão, é de querer agradar o outro. A gente se permitiu muita intimidade ao longo do tempo e chegou em um formato perfeito, mas estamos sempre experimentando uma doideira”, brinca João. “Eu me sinto muito à vontade para fazer e falar das coisas que desejo de forma natural com ele, sem julgamento”, diz Natália.
A gordofobia no meio lésbico
“A minha vida inteira eu fui gorda. Sou de Birigui, uma cidade pequena de São Paulo. Lá parece que o pensamento é ainda mais retrógrado que em São Paulo, onde vivo hoje. Existia uma cobrança da família para que eu emagrecesse, cheguei a apostar com meu tio que se eu emagrecesse ele me daria um iPhone”, conta a vendedora Nyele Thaada, de 25 anos.
Ela, que é lésbica, teve um namoro aos 16 anos com outra mulher gorda. “Ela sempre fez com que eu me enxergasse de uma maneira maravilhosa, acho que o processo de aceitação do meu corpo teve muito a ver com isso. Hoje eu não ligo de vestir uma roupa super curta ou super decotada”, conta ela.
Aos 18 anos, em 2014, Nyele se mudou para São Paulo e foi aí que ela começou a ter uma vivência maior no mundo lésbico. “Fiz amizades com meninas lésbicas, comecei a ir para festinhas e foi ridículo. Fiquei muito mal de autoestima, porque percebi que no rolê lésbico era igual a tudo que eu já vivia antes. E era muito difícil ver mina gorda no rolê, todo mundo te olhava meio torto, fui vendo que existe muita lésbica gordofóbica. Eu fiquei com uma menina que era super sapatão padrão. Pela internet a gente conversava muito, trocava altas ideias, e pessoalmente ele me tratava tipo: oi, a gente se conhece?”, relembra. A pesquisadora Maria Luiza Gimenez afirma que as mulheres gordas estão mais suscetíveis a relacionamentos abusivos. “Mulheres magras também passam por essas relações, mas por esse corpo ser estigmatizado, considerado como inferior, machucar e abusar dele parece muitas vezes normal ou natural”.
Em 2018, Nyele engatou um relacionamento sério com uma ex-namorada de adolescência, Duda Vargas, de 29 anos, com quem hoje mora junto. Duda é magra e encara a relação entre as duas com muita naturalidade, embora admita que se sinta em um processo de aprendizado contínuo. “Eu nunca tive outra relação com uma menina gorda. E, lógico, tinham tabus a serem quebrados e questionados. Houve uma situação de um amigo meu fazer um comentário gordofóbico. Em um dia que estava super frio ele falou: você não sente frio porque você tem pele a mais, e a Ny ficou muito chateada e eu nem tinha pensado nessa fala dele. Com ela, comecei a reparar, ela é muito importante na minha desconstrução”, diz Duda.
Na cama? Só sucesso. “Minha melhor e maior experiência sexual foi com ela. Foi com quem eu mais me aventurei, mais tive prazer, mais quis dar prazer. Ela ser gorda nunca interferiu, ela é desde sempre a menina com quem eu mais vivi, a gente tem uma ligação carnal muito forte”, diz Duda Vargas. Nyele concorda.
O corpo gordo goza
Um convite para participar de um workshop com esse nome me chamou a atenção para um tema que eu já sabia no fundo: o quanto a vivência da minha sexualidade era afetada pelo tamanho do meu corpo. Marquesa ChandraKant é quem ministra o curso. Ela, uma mulher gorda, encontrou seu lugar de libertação e conforto com o próprio corpo no tantra e no burlesco e, agora, deseja passar adiante esse conhecimento.
Durante um fim de semana, os participantes do curso feito Zoom são convidados a compartilhar e aprender liberar o corpo de traumas e trazer a energia sexual ao corpo, com ajuda de técnicas e meditação. De sábado para domingo, o dever de casa era se masturbar, em um exercício de se sentir, de gozar para dentro.
“A ideia é entender que o corpo todo tem uma energia, e que a gente não está baseado no gozo só do genital, que é o que a gente vive, é entender que eu sou um canal de energia e quando desperto, eu posso ter o corpo inteiro gozando. E a vontade de passar isso adiante foi importante para mim pela minha experiência como mulher gorda”, diz ela.
Bissexual, a Marquesa conta que percebeu no burlesco que o corpo gordo é extremamente objetificado. “Existe esse pensamento de que as mulheres gordas são as melhores de cama. Como se existisse uma única oportunidade de fazer sexo com aquela pessoa e aí você vai fazer tudo, mesmo que você não queira. E eu vivenciei isso a minha inteira. Eu sempre fui gorda e a primeira vez que eu fiz sexo, com um cara que eu achava que era meu namorado, no dia seguinte, ele não olhou na minha cara, porque ele estava com os amigos”, diz ela.
Ela experimentou sua vida sexual abraçando a ideia de ser uma mulher que gostava de fazer de tudo na cama. “Fiz muitas coisas que hoje eu jamais faria, porque me machucaram profundamente, não só física, mas emocionalmente. A pressão da performance sexual se passa para todo mundo, mas para os gordos, isso é maior, porque preciso provar que eu tenho algo bom a oferecer, como uma compensação pelo corpo que ninguém quer. Só que quando acaba o sexo, você se sente muito mal, porque você continua não sendo assumido. A maioria das minhas experiências sexuais me violavam, mesmo que tenham sido consentidos por mim” diz ela. Hoje, Marquesa ajuda outras mulheres a se desvincularem desses estigmas.
“O número de acesso de pessoas procurando mulheres gordas na pornografia é imenso e vem crescendo muito, tenho pesquisado isso. O que me leva a pensar que o corpo gordo causa desejo, mas precisa ser escondido, fica na masturbação, mas não é assumido”, diz Maria Luiza Gimenez, acadêmica que teve como tese de doutorado “Lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos”. De acordo com dados do PornHub, a categoria BBW (Big Beautiful Women) subiu cinco posições no ranking geral do site em 2019.
Pensei em mim, nas amigas gordas que tenho, nas mulheres gordas que nem conheço e em como cada uma delas merece respeito, ser assumida e levada a sério. O corpo gordo é sexy, é interessante, é desejado e não é motivo de piada. Mas há caminhos a serem percorridos e a gordofobia atrapalha a jornada, mas não a impossibilita.
Matéria publicada originalmente no Universa UOL
Fotos: Pexels e Arquivo Pessoal
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