“Quando eu não tinha internet, não fazia ideia que não-indígenas tinham tanto preconceito”, diz Kauri Daldeia

“Quando eu não tinha internet, não fazia ideia que não-indígenas tinham tanto preconceito”, diz Kauri Daldeia
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Com 2,4 milhões de seguidores no TikTok, influenciador é uma das vozes contemporâneas mais importantes na luta contra a desinformação

Por Rafaela Fleur

Kauri Daldeia, influenciador indígena de 28 anos da etnia Waiãpi, é um fenômeno nas redes sociais e um nome importante no ativismo. Com quase 2,5 milhões de seguidores no TikTok (@odaldeia) e 414 mil no Instagram (@daldeiaorei), Kauri vive na aldeia Karapijuty, no Amapá, e começou a movimentar as redes em 2021. Seu primeiro vídeo publicado viralizou em um dia, batendo mais de um milhão de visualizações nas primeiras 24 horas. Desde então, Kauri se tornou um dos nomes mais importantes no ativismo indígena digital e conseguiu realizar boa parte de seus sonhos. “Naquela época, tinha muita vergonha de aparecer na câmera, nas fotos. Mesmo assim, me esforcei para conseguir gravar. Hoje, vejo que melhorei muito. Quero que todos os meus irmãos possam fazer o mesmo, sempre incentivo“, revela.

O sucesso nas redes levou o jovem a ser convidado para ser locutor  do podcast ‘Papo dos Isolados‘, produzido pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). O programa fala sobre a proteção dos indígenas isolados, demarcação de terras e as ameaças que enfrentam.

Ao compartilhar seus rituais e sua vivência nas redes sociais, Kauri encontrou um público jovem e curioso. Em entrevista, ele contou que tinha receio de postar nas outras redes sociais por medo de ser julgado. Porém, quando as pessoas começaram a engajar, o jovem decidiu arriscar e movimentar todas as suas páginas, criando conteúdos exclusivos para cada plataforma. “Não sabia muito sobre formatos de vídeo, não sabia o que era reels, fui descobrindo e aprendendo. Agora, sei como funciona tudo“, relata.

A chegada da internet, junto com o acesso à tecnologia e ao celular, mostraram ao influenciador que, apesar do carinho recebido, também existe muito espaço para preconceito e discursos de ódio. “A sociedade não-indígena precisa entender que, no Brasil, a cultura indígena é diversa. A sociedade não indígena precisa entender, também, que a cultura indígena é muito diferente da que eles vivem, nosso modo de vida é outro“, desabafa.

Exemplo de como a produção de conteúdo pode ser uma ferramenta poderosa para a conscientização e a educação, Kauri falou com exclusividade ao Terra Nós.  Em entrevista, o influenciador contou como começou a relação com a internet, compartilhou detalhes das trocas com público e dividiu reflexões potentes sobre os povos nativos.

Como e quando você começou a usar as redes sociais para compartilhar as suas vivências?

Comecei a movimentar as redes em 2021, já tem dois anos. Eu já tinha redes sociais, mas só comecei mesmo a produzir conteúdo nessa época, no TikTok. Foi tudo de repente. Vi um anúncio do TikTok no YouTube e decidi baixar o aplicativo. Vi que era uma rede social de vídeos curtos, com um público jovem, o que me interessou. Postei meu primeiro vídeo mostrando um trecho de um dos nossos rituais, e ele viralizou. Em um dia, bateu mais de um milhão de visualizações. Não tinha nenhum seguidor nessa plataforma e, quando acordei, me deparei com mais de 40 mil pessoas me seguindo. Nem acreditei. Quando olhei os comentários, tinha de tudo. Comentários negativos, positivos e muitas curiosidades. Decidi começar a responder as perguntas, mas fiquei com receio por conta dos comentários ruins. Alguém fez um comentário bem sem noção, perguntando como é que os indígenas usam celular, como carregam o aparelho. Respondi com ironia e postei outro conteúdo falando que nós carregamos celular com peixe elétrico, usei o humor. Viralizou de novo. Aí, comecei a usar muito o TikTok, mas tinha receio de postar as mesmas coisas no Instagram, tinha medo de ser julgado, mas as pessoas começaram a me marcar lá também. Foi quando resolvi arriscar e movimentar todas as páginas, comecei a criar conteúdos exclusivos para cada plataforma. Não sabia muito sobre formatos de vídeo, não sabia o que era reels, fui descobrindo e aprendendo. Agora, sei como funciona tudo.

Você foi se surpreendendo com a reação do público e o engajamento alto? Como foi perceber que os seus conteúdos estavam alcançando milhares de pessoas?

Eu fiquei sem acreditar quando o primeiro vídeo viralizou, aí resolvi postar mais para ver se estava dando certo. Nunca tinha ganhado tantos likes e compartilhamentos. Descobri que a produção de conteúdo conquista seguidores. Naquela época, tinha muita vergonha de aparecer na câmera, nas fotos. Mesmo assim, me esforcei para conseguir gravar. Hoje, vejo que melhorei muito. Depois que comecei a movimentar minhas páginas, incentivei os meus irmãos a também gravarem conteúdo. Aqui na terra indígena Waiãpi, onde eu moro, só os meus familiares gravam conteúdos, até agora. Espero que outros indígenas da minha região também comecem a fazer isso. Fico muito feliz que estejam gostando do meu trabalho.

E o podcast Papo dos Isolados, como e quando surgiu? O que você acha mais interessante nesse formato?

Recebi um convite da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e aceitei a proposta deles, isso foi ano passado, em 2022. Comecei a fazer a locução do podcast para eles. O programa fala sobre indígenas isolados, sobre a nossa proteção e as ameaças que enfrentamos. Falamos também sobre as questões de demarcação e desmatamento, que todo mês segue aumentando. Ele é muito importante para mim.

Existem muitos estigmas e preconceitos em torno da relação dos povos nativos com a tecnologia. Você lidou com isso em algum momento?

Sofremos preconceito fisicamente e digitalmente. Existe uma galera muito preconceituosa nas redes, hoje consigo ver isso com a chegada da internet e nosso acesso à tecnologia, ao celular. Quando eu não tinha internet na aldeia, não fazia ideia que não-indígenas tinham tanto preconceito. Hoje, existem muitos influenciadores que também compartilham vivências indígenas, isso ajuda. Eu só posso falar do meu povo, porque a cultura indígena, ao contrário do que pensam, é muito diversa. Existem vários povos indígenas, diversas línguas, costumes. Muitos não sabem nada sobre nós e nem querem saber, só sabem espalhar preconceito. Estamos aqui mostrando que nós indígenas somos capazes, que não somos preguiçosos. Lugar de indígena é onde ele quiser, e hoje estamos ocupando espaços cada vez mais.

Qual é a conquista mais valiosa que as redes sociais te trouxeram?

Reconhecimento do meu trabalho e melhor entendimento sobre as redes sociais. Ambos são muito importantes para mim.

Você consegue monetizar os seus conteúdos de alguma forma? Como foi perceber que isso era possível?

Hoje eu consigo. Não sabia que as redes sociais monetizavam, demorei muito tempo para entender que ganhavam dinheiro com isso. Achava que era só um meio de ter reconhecimento, ganhar público, conversar com os amigos. Achava que era só para ter fama. Descobri que não era isso quando fui pesquisar como funcionava.

O que te inspira nas redes sociais? Quais conteúdos você gosta de consumir?

Sigo muitas páginas de humor, do Tirulipa, Tiririca, Whindersson Nunes, Thiago Ventura, Rafael Portugal. Também sigo artistas de música, adoro música. Sigo Luan Santana, muitos MC’s de rap e funk.

Quais preconceitos em relação aos povos originários você acredita que o Brasil, enquanto sociedade, precisa superar?

A sociedade não-indígena precisa entender que, no Brasil, a cultura indígena é diversa. A sociedade não indígena precisa entender, também, que a cultura indígena é muito diferente da que eles vivem, nosso modo de vida é outro. A realidade da aldeia não é igual a da cidade. As pessoas preconceituosas deveriam procurar conhecimento antes de falar, antes de julgar. Não queria que isso durasse para sempre, mas, infelizmente, sei que o preconceito não é só com os indígenas. Tem gente que é preconceituosa mesmo e não quer saber de nada.

Sobre o que as pessoas mais tem curiosidade de saber sobre você?

A cultura, principalmente. Adoram me perguntar, por exemplo, se na minha cultura os homens podem ter várias mulheres, se as mulheres podem ter vários homens. As pessoas têm curiosidade em saber se eu sou realmente indígena, se moro na aldeia, se falo a língua nativa, se sou casado, se tenho filhos, onde eu moro. São muitas curiosidades.

Você sente que a sua vida mudou muito nos últimos tempos? De que forma?

Mudou muito, hoje não sou a mesma pessoa que era antes da internet. Me tornei um influenciador, um ativista. Tenho um público que realmente quer saber da minha cultura, posso mostrar a minha realidade, mostrar quem sou. Consegui alcançar meu objetivo, porque sempre quis ter público. Isso é muito importante para levar conhecimento, fazer denúncias. Se acontece algo com meu povo, corro para as redes para falar.

Publicado originalmente no portal Terra – (com edição na Redação VSP)
Foto: Kauri Daldeia, influenciador indígena da etnia Waiãpi/Divulgação

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