Como proceder para evitar a gordofobia nas consultas de saúde?
A reprodução da gordofobia pode ser algo natural dentro de uma consulta, é fundamental tratar da obesidade como uma condição, não um rótulo
Por Úrsula Neves
Na visão da médica especialista em endocrinologia e metabologia Juliana Gabriel, que também é fundadora da *Tribu Saúde e criadora do canal do Youtube Endocrinologia Para Todos, voltado para educação em saúde e divulgação científica, mesmo com boas intenções, os profissionais de saúde reproduzem gordofobia no dia a dia.
“O maior exemplo de todos é a conduta padrão de ‘mandar o paciente emagrecer’ para melhorar a saúde. A verdade é que perder peso nem sempre está associado com ganhar saúde. Muito pelo contrário. Muitas doenças se manifestam com perda de peso e muitas pessoas emagrecem através de medidas controversas e arriscadas. Então, emagrecer nem sempre é sinônimo de ganhar saúde. O médico deve ter como objetivo melhorar a saúde do paciente e para tal deve incentivar práticas que melhorem a saúde – como uma alimentação mais saudável, praticar atividade física, cuidar do sono e gerenciar o estresse”, pontua Juliana Gabriel, em entrevista ao Portal de Notícias da PEBMED.
Outro exemplo de gordofobia citado pela endocrinologista vem a partir do pressuposto que a pessoa que procurou o médico quer emagrecer e centralizar toda a sua consulta nisso. Ou ainda a partir do pressuposto que a pessoa com obesidade é necessariamente sedentária ou se alimenta mal. O que não é verdade.
“Muitas pessoas gordas podem ter hábitos extremamente saudáveis e estarem com os exames em dia – e terem procurado o serviço de saúde por qualquer outro motivo. Então, não se deve partir de nenhum pressuposto ao receber um paciente gordo. Ele é como qualquer outro paciente e a conduta deve ser a mesma: queixa principal, anamnese, exame físico… sem pressupostos“, completa a endocrinologista.
Avaliando o IMC
Juliana Gabriel lembra que a obesidade é um diagnóstico realizado com base no IMC, uma ferramenta que tem seus prós e contras.
“Apesar de ser um diagnóstico clínico, inclusive com CID, os médicos sabem que o IMC não representa completamente o estado de saúde de um indivíduo e, por outro lado, é um termo carregado de estigma e que pode sensibilizar emocionalmente o indivíduo ou mesmo afetar o vínculo profissional-paciente. Não acho que falar em voz alta que uma pessoa está em grau I ou III de obesidade vá trazer benefício para ela. Podemos abordar as consequências de uma síndrome metabólica de outras formas, com outros enfoques. Nem toda pessoa gorda vai se sentir confortável em ser chamada de gorda, por exemplo. Neste caso, continua valendo a máxima do respeito ao indivíduo que usamos nos casos de identidade de gênero: pergunte a pessoa como ela gostaria de ser chamada. Ou esperar a pessoa falar abertamente sobre isso“, explica a especialista.
Pontos que devem ser repensados pelos médicos
Vale lembrar que a consulta médica com um paciente com obesidade deve ser conduzida como a de qualquer outro paciente. E, claro, de acordo com os preceitos da semiologia aprendidos, que são a melhor prática médica: começando pela identificação, queixa principal, história da doença atual, antecedentes e exame físico.
A partir daí, deve-se traçar diagnósticos e um planejamento terapêutico que leve em conta a queixa principal do indivíduo e também os diagnósticos atuais e fatores de risco identificados pelo profissional. Sem colocar no centro da consulta o aspecto do corpo ou o peso, mas sim os fatores de risco encontrados na consulta.
Os médicos devem estimular hábitos saudáveis para todo e qualquer paciente, independente do seu peso ou da sua queixa. Contudo, antes de estimular um hábito saudável é importante perguntar ao paciente se ele já não está praticando aquilo. Por exemplo, não se deve estimular um paciente a praticar exercício sem antes perguntar se ele já não o faz. Não é porque um paciente é gordo que ele é necessariamente sedentário.
Termo paciente obeso e a gordofobia
“Uma observação importante é justamente o termo “pacientes obesos”. Não se deve classificar uma pessoa pela condição ou cid. Não existe obeso ou diabético ou asmático. São pessoas com obesidade, com diabetes, com asma, etc. Rotular um indivíduo pela sua enfermidade o desumaniza. Precisamos começar a adotar a linguagem ‘peoplefirst’ com mais assertividade, inclusive nos textos médicos“, alerta Juliana.
Segundo a endocrinologista, os médicos devem ficar mais atentos às dificuldades que os pacientes com obesidade passam no momento da consulta.
“Um grande exemplo de gordofobia que já vivi inúmeras vezes na minha prática como endocrinologista é não ter aparelho de pressão com a braçadeira de tamanho adequado. Normalmente, tentamos contornar isso medindo a pressão no antebraço, mas todas as vezes que tive que fazer isso notei um grande constrangimento por parte do paciente. Um outro exemplo de gordofobia é a falta de maca, balança adequada para pessoas com mais de 150 kg ou a falta de acesso a exames como a ressonância magnética, onde o paciente não coube dentro da máquina. Soube também de um caso através de uma colega de um paciente que precisou fazer a ressonância num hospital veterinário e isso gerou um grande impacto emocional deste indivíduo“, destaca.
Um outro de exemplo de gordofobia que acabou se tornando mais evidente depois da prática regulamentada da teleconsulta foi que muitos pacientes se sentem mais confortáveis em se consultar online, pois desta forma não são obrigados a ser pesados.
A profissional de endocrinologia ressalta ainda que pesar um paciente é importante, mas devemos respeitar o desejo desta pessoa, caso ela não queira ter seu peso exposto em uma consulta presencial
“Pessoas têm diferentes relações com o peso e se o objetivo do médico é cuidar da saúde, existem outras formas de avaliar a mesma que não o peso total. Respeitar o paciente deve sempre vir em primeiro lugar“, diz.
Mas, afinal: como não reproduzir gordofobia ao cuidar da saúde de alguém?
O correto seria, segundo a especialista, após a avaliação individual completa do indivíduo (anamnese, exame físico, exames complementares), incentivar práticas que melhoram a saúde ou iniciar projetos terapêuticos específicos para controle de comorbidades. Melhorar a alimentação, o sono, gestão do estresse e ansiedade, aumentar o nível de atividade física diário são sim condutas adequadas.
“Até porque todo paciente com obesidade já foi ‘mandado emagrecer’ por muitas pessoas (profissionais de saúde ou não), então ‘mandar emagrecer’ é simplesmente superficial e ineficaz“, enfatiza a médica.
A profissional dá como exemplo a apnéia do sono. Ela contou que vê muito essa abordagem de “mandar o paciente emagrecer” para tratar a apnéia. Já teve, inclusive, um caso no consultório onde ela encaminhou ao otorrino para investigação, porém o mesmo encaminhou o paciente direto para cirurgia bariátrica sem nem avaliar mais profundamente o caso.
Apneia e sobrepeso
Juliana frisou que a apneia está relacionada não apenas ao peso do paciente, mas a diversos outros fatores, como – por exemplo – o enfraquecimento da musculatura do pescoço.
“Muitas vezes, a fisioterapia respiratória ajudaria muito mais rápido na melhora do paciente do que a perda de peso. E a melhora da apneia por si só é um fator de melhora também da obesidade. Portanto, neste caso, deveria ter sido realizada a investigação da apnéia do paciente e não inferir que a causa é o peso sem nem se certificar de que seja o caso. É esse tipo de superficialidade que acaba levando a condutas gordofóbicas sem que a gente perceba. Se mudarmos o nosso olhar para o ser humano na nossa frente ao invés do CID, acredito que será muito mais fácil e efetivo a abordagem da obesidade complicada (com síndrome metabólica por exemplo) do que simplesmente ‘mandar emagrecer’“, conclui Juliana.
*Fundadora da Tribu Educação, Juliana Gabriel, disponibiliza um curso de capacitação para profissionais de saúde no atendimento clínico sem gordofobia.
Esta entrevista foi revisada pela equipe médica do Portal PEBMED.
Publicada originalmente no portal PEBMED
Foto: Reprodução/PEBMED
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