Dezembro Vermelho e combate ao HIV: Jayme Periard fala de preconceito em protagonizar primeira série sobre o tema
O ator lembra dos tempos da Globo, quando trabalhou na 1a produção com essa temática; a negativa de outros atores em viver o personagem principal e do “esquecimento” da emissora com a minissérie. Nove anos depois desse trabalho, ele tornaria a viver um personagem soropositivo, na novela “Vidas Cruzadas”, da TV Record. “É uma pena que a Globo não reapresente a série na programação para que outras pessoas sejam tocadas pelo projeto”, ressalta Jayme Periard.
Por Vítor Antunes
O mês de dezembro abre a temporada de discussão acerca do combate ao vírus da Aids. A primeira série na TV sobre o assunto foi “O Portador”, de 1991, exibida pela Globo. Historicamente costuma ser atribuído a ela o título de projeto pioneiro na dramaturgia sobre a questão do HIV ainda em seu auge de contaminação, quando a doença ainda não era plenamente conhecida e seus portadores eram alvo de profundo preconceito.
“Uma pessoa que canta ‘Brasil, mostra a sua cara’ não pode esconder a sua”. Foi sob esta premissa que o cantor Cazuza (1957-1990) falou abertamente sobre o fato de ser portador do vírus do HIV, numa época em que ser soropositivo era algo compreendido como uma sentença de morte. A doença, ainda em fases iniciais de pesquisa e compreensão junto à sociedade, gerava preocupação e temor pois não se sabia com clareza àquela época quais as formas de contágio e qual o comportamento social que deveria haver junto às pessoas HIV-positivas. Por esta razão, a Globo produziu, ainda que com alguma resistência, a minissérie “O Portador”, protagonizada por Jayme Periard. O ator fala sobre o personagem Léo, vivido por ele, ter sido recusado por outros atores temerosos do estigma que a doença se encaixava naqueles idos, comenta sobre ele próprio ter sido apontado como portador do HIV, e destaca a relevância educativa da minissérie, exibida em 1991. Anos depois deste trabalho, Periard tornaria a viver um soropositivo na novela “Vidas Cruzadas”, da Record, porém sob uma outra ótica. Seu personagem, Amaro, era o vilão da trama e transmitiu o vírus à própria esposa numa relação sexual não consensual.
Segundo o Ministério da Saúde, aproximadamente 920 mil brasileiros vivem com HIV. Deste total, 89% foram diagnosticados, 77% fazem tratamento com antirretroviral e 94% das pessoas que fazem o tratamento não o tem de forma detectável. Segundo o Boletim Epidemiológico de 2021, na Cidade de São Paulo, foram notificados 2.472 novos casos de HIV em 2020, o que se configura numa redução significativa, 35,6%, quando comparado o último quadriênio.
– O tempo não para –
Exibido em 1991, “O Portador” demorou meses para ir ao ar e passou por todo tipo de resistência na Globo, tanto em sua produção, como de seu elenco. O tema de abertura, “O tempo não para”, é o mesmo que batiza uma canção de Cazuza, que morreu no ano anterior. É o que conta-nos Jayme Periard. Segundo o artista, Herval Rossano (1935-2007) e José Antônio de Souza (1943-2019) tiveram a ideia de fazer “uma série sobre o tema, que era totalmente desconhecido [naquele momento]. Havia pessoas que sofriam pelo HIV, foi uma época na qual eu perdi vários amigos. Rossano teve a ideia de não apenas falar sobre o tema, mas de aborda-lo de uma forma que não fosse preconceituosa, já que havia, naquele momento, uma tendência a colocar a Aids como uma ‘coisa dos gays‘”. A fala do ator reflete justamente a fase inicial da descoberta do vírus HIV, quando dizia-se que ele era uma “praga gay” ou um “câncer gay” – expressões estas presentes não apenas na mídia, mas até mesmo em artigos científicos daquele momento.
Por conta da associação indevida e preconceituosa, Periard relata que o diretor pensou em abordar a doença sob uma outra ótica. Através de um personagem “hétero, que é contaminado através de uma transfusão de sangue devido a um acidente de avião”. Léo, personagem de Jayme, estava a caminho de Manaus quando o avião cai na Amazônia. Depois de contaminado, Léo entra numa saga a fim de descobrir quem foi o doador que o contaminou. “Sem raiva ou desejo de vingança. Ele o faz a fim de alertá-la sobre a doença“.
“Naquela época muitas pessoas sofriam pelo HIV. Eu perdi vários amigos por conta do vírus. (…) A coisa mais importante da minissérie foi tirar o estigma do preconceito” – Jayme Periard
Os reveses da série começaram ainda na pré-produção. Segundo relata o protagonista, o diretor havia pensado em Periard para interpretar Léo, porém “Herval me falou que a TV queria um nome de maior expressão. Uma semana depois, contudo, Rossano relatou que os atores contactados ficaram com medo de interpretá-lo. Ou por conta do estigma da personagem ou por não acreditarem no projeto“. Depois de deferida a sua escalação, a própria TV optou por compactar o projeto. “Inicialmente seriam 24 capítulos. A Globo empurrou com a barriga e disse que seriam menos“. Ainda que haja um compacto na Internet de 4 capítulos, bibliografias apontam que a série foi exibida em 8 episódios.
Prossegue Periard dizendo que “fizemos a série de acordo com o que foi possível e do tamanho que foi permitido. Na época, as pessoas que portavam o HIV eram evitadas, entravam num processo de pânico e acabavam por ficar muito solitárias em sua luta. Havia um desconhecimento tão grande que era algo como uma sentença de morte. Era muito difícil ter de lidar com a ideia de algo, até então, mortal“.
A solidão do soropositivo daquela época também foi retratada na série. As primeiras pessoas a saberem da condição de Léo foram o casal Reginaldo (Jonas Bloch) e Luciana (Lilia Cabral), pais de Quiquito (André Luiz). Luciana, decide, afastar Léo de seu convívio e de qualquer contato com Quiquito. Entre o meado dos Anos 1980 e o início dos Anos 1990 cria-se que qualquer contato com uma pessoa soropositiva podia ser o suficiente para transmitir o vírus, o que descobriu-se não ser verdade.
Tão logo após a exibição do projeto – elogiado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), pelo sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), igualmente soropositivo, e pelo do médico Mário Barreto Corrêa Lima, diretor do Hospital Gaffré e Guinle, centro de referência de tratamento de Aids no Rio de Janeiro – o ator, elogiado por seu papel, decidiu passar uns dias em Búzios, na Região dos Lagos. Ao chegar na cidade litorânea, encontrou, por acaso, um amigo de infância que tal como seu personagem, havia positivado. “Foi muito difícil encontrar e conversar com ele, ver como estava lidando com a ânsia de vida e essa é uma das coisas que acontecia àquelas pessoas. Depois fiquei muito abalado emocionalmente, mas consegui oficialmente passar por essa questão emocional. A gente não tinha dimensão do tamanho do projeto, (…) mas fizemos um trabalho com muita honestidade e muita verdade”, afirmou. Outra experiência curiosa daquele momento aconteceu quando outro amigo do ator, confundindo-o com a personagem, achou que era ele, Jayme, o portador do HIV: “Ele me ligou aos prantos para saber se eu estava precisando de alguma coisa. As pessoas confundiam muito“.
Ainda segundo o ator, este é um dos personagens “dos quais mais tenho orgulho na minha carreira e pelo qual tenho o maior carinho. É impressionante ter gente que me aborda para falar de ‘O Portador’ ainda hoje, mesmo aquelas que eram muito novinhas quando da exibição da minissérie, um trabalho de tamanha importância e de uma riqueza emocional. Isso para nós, atores é um grande privilegio“.
Contudo, Jayme lamenta por aquilo que acredita ser uma espécie de desprezo da casa para com o produto: “Eu lamento muito que a série tenha sido praticamente engavetada pela Globo. Ela não consta em nenhum catálogo e nunca foi reexibida“.
“Há um abandono da série. Fiquei esperançoso de que fosse um trabalho que tivesse uma divulgação maior e não foi isso que aconteceu. Depois de pronto, ele ficou na gaveta por um ano ou mais e parece ter havido uma rejeição ao projeto muito grande. É uma pena que ele não esteja na programação para que outras pessoas pudessem ser tocadas pelo projeto” – Jayme Periard
Nove anos mais tarde, o ator tornaria a viver um personagem soropositivo, o Amaro, de “Vidas Cruzadas”, da Record. Nesta novela, a discussão era outra: Amaro era o vilão da trama. Promíscuo, ele não sabia portar a síndrome e transmitiu-a à personagem Leonor (Marta Mellinger), sua esposa, numa relação não consensual. Para além dessa violência, o personagem também costumava agredir a mulher. Segundo o ator, ainda que o personagem fosse “um perverso, um bárbaro, as matérias abordavam sobre os rumos da novela, mas não havia uma preocupação ou alguma discussão, ou algum movimento que se propusesse a discutir a violência contra a mulher. O que acontece é que hoje em dia todo mundo sabe e há ainda mais casos de feminicídio e abusos e de uma forma que eu, além de indignado, compreendo menos o ser humano. Não há mais o que se informar sobre isso. Parece que as pessoas estão entrando num caminho que me parece sem volta“.
Jayme conta-nos que tanto a questão do HIV como a da violência doméstica em “Vidas Cruzadas”: “Foi algo surpreendente. Era uma novela que, inicialmente, não pretendia trazer esse tipo de discussão. A abordagem daquele tema no meio da novela foi algo muito inesperado, ainda que importante e interessante. Porém, em toda entrevista que eu dava na época tentava salientar a importância da discussão [da violência domestica], mas não havia eco“.
Há hoje trabalhos nos quais se discutem temas delicados, mas deve se haver o cuidado para que não se pareça panfletário ou oportunista e há a possibilidade em ser panfletário e oportunista na discussão de temas relevantes como esse – Jayme Periard
Coincidentemente, sete anos após a exibição de “Vidas Cruzadas”, o ator esteve em outra trama na qual o HIV teve destaque. Trata-se de “Amigas e Rivais”, de 2007. Desta vez não era o seu personagem o soropositivo, mas o de Karla Tenório, uma das protagonistas.
– Soropositividade no Brasil aumenta entre jovens –
Segundo reportagem publicada no jornal Estado de Minas, repercutindo uma publicação do Estado de São Paulo, desde o início da gestão Bolsonaro, o Ministério da Saúde sofreu um corte significativo em pelo menos 12 programas da pasta. Ao todo, as perdas chegam a R$ 3,3 bilhões e afetam diretamente os programas que distribuem medicação voltada ao tratamento não apenas da AIDs mas de outras IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis). O corte de verbas gerou uma apuração pelo Ministério Público Federal do Acre.
Um levantamento feito no início de 2022 pelo professor Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) apontou que o investimento oriundo do Governo Federal em políticas de saúde pública voltadas a este fim reduziu-se drasticamente desde 2019. No ano de 2021, segundo aponta a Agenda de Notícias da AIDS, a verba destinada para esta finalidade corresponde a 0,6% do que foi gasto em 1998 (R$ 6,5 milhões). Em 2018, o Governo Temer destinou R$ 22 milhões e em 2015, o Governo Dilma, R$ 20,5 milhões.
No início da gestão Bolsonaro, o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, quando perguntado sobre quais os programas que o novo Governo destinaria no combate à AIDS, respondeu que “As campanhas de prevenção não poderiam ofender a família brasileira e sugeria que esse era um dos assuntos que deveriam ser ensinados em casa e não pelo Ministério“. Assim, as campanhas de prevenção sobre o tema passaram a ser ou ruins ou inexistentes. Nenhuma peça publicitária foi veiculada abordando o assunto. Durante a produção desta matéria, o Ministério da Saúde lançou uma a Campanha contra Aids focada em prevenção entre jovens. Com efeito, a faixa etária mais notificada é aquela compreendida entre os 25 e 29 anos, representando 26,3 % do número de casos, segundo dados da UNAIDS (Programa das Nações Unidas pela Aids) e do Ministério da Saúde. Segundo estes órgãos, a forma de transmissão foi majoritariamente pela exposição sexual, sendo 89,8% das causas no ano de 2020.
Em razão de medicação de controle do HIV ser mais amigável hoje em dia, sem grandes eventos adversos e com o uso de um a dois comprimidos diários – diferente dos antigos coquetéis de 10, 15 ou 22 drogas – faz com que muitos jovens tratem o HIV como a uma doença crônica, o que é preocupante. Ainda que haja pessoas que lancem mão do uso do PrEP – Profilaxia pré-Exposição – uma barreira contra a infecção por HIV – o medicamento não bloqueia outras IST’s, o que torna o uso do preservativo ainda algo fundamental.
Para Jayme Periard, “o desenvolvimento tecnológico que proporcionou haver vários medicamentos acabou por fazer haver um relaxamento nos cuidados com o HIV como se ele houvesse a acabado. De forma semelhante, tratamos a pandemia de Covid. Há uma tendência, irresponsável obviamente, de todos nós enquanto sociedade em não falar sobre aquilo que se trata como uma ‘noticia gasta’, o que é muito prejudicial, já que a garotada não entende a dimensão desse problema“.
O ator reitera os dados oficiais quando afirma que “não há uma campanha sobre nada no que se refere ao HIV. O que se faz é muito tímido ou é inadequado, mostrando-se de forma ameaçadora ou fatalista o que acaba afastando as pessoas. Antigamente os médicos solicitavam nos hemogramas, testes de HIV, algo que não é praticado hoje“.
Em 1996, antes de o Ministério da Saúde ofertar o tratamento universal aos pacientes com HIV/Aids, a sobrevida era estimada em cerca de cinco anos. Porém, segundo um estudo publicado na revista científica britânica The Lancet, se uma pessoa jovem começa já cedo a tomar os medicamentos de controle para o vírus , a sua a expectativa de vida passa a ser “bem perto da normal“. Jayme celebra o avanço daquele que havia quando da época em que em que gravara a minissérie “O portador”.
“Hoje, felizmente há medicação e uma perspectiva bacana em relação a isso” – Jayme Periard.
– Aids na teledramaturgia –
Veja outras quatro produções da TV brasileira que também abordaram a problemática do HIV:
– Corpo Santo, TV Manchete (1987): À novela de José Louzeiro (1932-2017), costuma ser atribuída a primeira aparição de uma personagem soropositiva nas novelas. Era Marina, uma prostituta, interpretada pela atriz Eliane Narduchi.
– Carmem, TV Manchete (1987): A trama de Glória Perez trouxe a personagem Rosimar, vivida por Thereza Amayo (1933-2022) como portadora do HIV. Nesta, a personagem causou polêmica em razão de não ser entendida como parte do que se entendia como “grupo de risco”: Era casada e tinha um parceiro fixo. A contaminação deu-se por conta de uma transfusão de sangue.
– Amigas e Rivais, SBT (2007): Olívia (Karla Tenório) era uma das protagonistas da novela. A moça descobria-se soropositiva e recebia o apoio de Ulisses (Joaquim Lopes). No fim, a moça tem um final feliz com o amado. Diferente dos típicos fins de personagens soropositivos, que costumavam morrer fragilizados pela doença. Esta trama optou pela esperança.
– Os Dias Eram Assim, TV Globo (2017): Na super-série da Globo – uma espécie de novela das 22h – Julia Dalavia vivia Nanda, que contaminava-se através de uma relação sexual desprotegida. Uma das fases da trama se passava nos Anos 1980, quando a Aids era desconhecida, e a abordagem do assunto trazia a perspectiva daquela década.
Publicada originalmente no site Heloisa Tolipan
Foto em destaque: Jayme Periard/Divulgação
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