Bullying e preconceito: jovens infratores encaram barreiras na volta à escola
Levantamento da Justiça mostra que 99% dos menores infratores vêm de escola pública, para onde são obrigados a retornar; governo prepara cartilha para conscientizar educadores
Por Pedro Nascimento
Localizado na avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, o Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional de Belo Horizonte (CIA-BH) é o destino obrigatório de todos os menores infratores pegos pela polícia na região metropolitana. São crianças e adolescentes de diversas idades, com passagens por crimes que vão desde uma simples briga até um homicídio. Em comum, quase a totalidade desses jovens vem da escola pública – para onde são obrigados a retornar. E é nessa volta para a sala de aula que o processo de ressocialização enfrenta seu maior desafio.
Esse dado e o perfil detalhado dos adolescentes constam no balanço anual do CIA-BH, que leva em consideração os atendimentos realizados em 2021. Foram registrados 3.649 atendimentos (entradas de um ou mais adolescentes), sendo que quase a metade dessas passagens (1.365) é de jovens reincidentes no crime.
Nas decisões proferidas nesses casos, mais de um terço (37%) foi em cumprimento do artigo 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que obriga a matrícula em uma instituição de ensino. Segundo a juíza Riza Aparecida Nery, coordenadora do CIA-BH, o que se vê é que as escolas refletem uma dificuldade que, muitas vezes, o adolescente encontra dentro de casa.
“Nós fazemos um acompanhamento de todos os casos dos adolescentes, e as escolas nos comunicam se ele está frequentando a aula. Temos também um órgão dentro do CIA, da prefeitura de Belo Horizonte, que faz esse controle para nós, mas a realidade é que esses jovens são muito vulneráveis e dependem de muito tratamento. A maioria está abandonada pelos pais e não tem apoio em casa para esse retorno aos estudos“, diz a juíza.
Segundo ela, a prevalência de jovens oriundos do ensino público diz mais sobre a condição social desses adolescentes do que especificamente a situação das escolas. Mesmo assim, o retorno desses adolescentes para a vida acadêmica é recheada de desafios, incluindo a forma como são recebidos na própria escola.
“No início, eles (jovens infratores) encontram certa resistência e sofrem até bullying“, explica a magistrada, que reitera que a volta às aulas, mesmo que conturbada, continua sendo o melhor caminho. “A Justiça vê a escola como o primeiro fator de ressocialização dos adolescentes. Ela é primordial na vida de adolescentes, então precisamos valorizar as escolas, os professores, que nos ajudam muito“, avalia.
– Estigma –
O peso de uma condenação na Justiça é algo que vai além da compreensão de muitos desses adolescentes que passam pelo CIA-BH. E é na hora de retornar para as rotinas escolares que essa realidade chega com toda a carga.
De acordo com o professor da Faculdade de Direito da UFMG e coordenador do programa da Justiça Restaurativa da mesma faculdade, Fernando Jayme, o processo de ressocialização esbarra na própria dificuldade que a sociedade impõe.
“Existe um problema muito grande nesse retorno do adolescente à sociedade, que é a questão do próprio estigma. É o carimbo que a Justiça coloca nas pessoas. Por isso eu acho importante falar com a gerência de crime escolar, porque essa rotulação que se cria em torno do aluno vira uma profecia autorrealizável: ele é marginalizado hoje e, consequentemente, ele se tornará um marginal no futuro, porque ele não é incluído“, detalha.
Os dados do CIA-BH indicam que a maioria dos adolescentes apreendidos são negros e pardos, oriundos da pobreza, com alta participação no tráfico de drogas (42%).
De acordo com o promotor de Justiça e coordenador do Fórum Permanente do Sistema de Atendimento Socioeducativo, Lucas Rolla, o perfil desses adolescentes indica que o vislumbre por uma vida de luxo faz com que os estudos, pouco incentivados dentro de casa, não entrem nem mesmo em segundo plano na vida deles.
“Quando vamos verificar quem é esse adolescente que chega ao CIA-BH, vemos que a maioria não está estudando, ou, mesmo que esteja, possui um nível de conhecimento muito baixo. E houve também um agravante nos últimos dois anos de um cenário de pandemia, quando a escola pública não funcionou e esses jovens ficaram à mercê do tráfico“, explica.
Atuando diretamente na relação dos jovens com esse retorno para a sala de aula, o promotor faz críticas à forma como esses alunos são recebidos. “A escola acaba criando uma barreira natural. Há muitas que acatam a determinação judicial de abrir matrícula, mas nem sempre com aquela acolhida generosa, de uma forma com que ele possa se reintegrar totalmente“, diz Rolla.
– Em números –
Na rede municipal de ensino, em Belo Horizonte, a Secretaria Municipal de Educação afirma que 21 alunos estão matriculados por ordem judicial. Em nota, a pasta explica que faz o acompanhamento desses adolescentes e que atua junto à Justiça para avaliar o desempenho dos alunos.
Na rede estadual, as Secretarias de Estado de Educação (SEE) e Justiça e Segurança Pública (Sejusp) informam que em todas as unidades socioeducativas de Minas Gerais há escolas estaduais para que o jovem em conflito com a lei tenha acesso à educação e possa “retomar e/ou dar continuidade às atividades escolares“. O acompanhamento desse aluno é feito por uma equipe multidisciplinar. Dados do mês de setembro mostram que nas unidades socioeducativas de responsabilidade do Estado, 97% dos adolescentes que cumprem medida de internação ou de internação provisória estavam matriculados e frequentando a escola.
Publicada originalmente no jornal O Tempo
Foto: Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional, Belo Horizonte/Por Fred Magno
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