Por que abrimos as comportas do preconceito em tempos de eleição?

Por que abrimos as comportas do preconceito em tempos de eleição?
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Divergência política faz parte do jogo. O problema é o uso da posição partidária (ou antipartidária) para referendar um preconceito de classe, de origem, de raça, do que for.

Por Matheus Pichonelli

Na reta final de mais uma eleição, me lembrei que estou há exatos quatro anos sem falar com a pessoa que um dia foi a minha melhor amiga na escola.

Já andávamos afastados, é verdade, mas tudo ficou impraticável depois que ela decidiu demonstrar em público sua frustração pelo resultado do primeiro turno das eleições de 2018, quando o apoio em massa dos eleitores do Nordeste ao candidato petista Fernando Haddad impediu a vitória de Jair Bolsonaro já no primeiro turno.

A postagem dizia algo como: “Votam no PT e depois vêm pedir emprego em São Paulo”

Ela não foi a única a postar mensagens do tipo. Nem foi a única que me levou a apertar o botão “desfazer a amizade” no Facebook e limar qualquer contato que nos ligava desde então. Naquele dia, se me lembro bem, o dispositivo foi acionado em pelo menos dez ocasiões.

A razão do meu espanto não foi o que ela pensava ou deixava de pensar sobre um candidato ou partido político. Eu poderia ficar aqui falando durante horas sobre os problemas e contradições de cada um deles. O problema é quando usamos uma posição partidária (ou antipartidária, no caso) para referendar um preconceito de classe, de origem, de raça, do que for.

Divergência política é parte do jogo. Mas a cada quatro anos essas discordâncias abrem uma fenda que não separam apenas orientações divergentes, mas formas inconciliáveis de encarar o mundo. Você sentaria à mesa com uma pessoa assumidamente antissemita, que nega o Holocausto?

Teria coragem de dizer que a pessoa tem essas ideias polêmicas, mas no fundo é gente boa, não fala nada daquilo de coração?

A mesma régua de distanciamento social vale para quem, de quatro em quatro anos, decide sublimar a frustração com uma caça às bruxas: o primo gay que de repente se transforma numa aberração que quer destruir o modelo de família tradicional, o amigo defensor do fim à guerra às drogas confundido com garoto-propaganda de paralelepípedos de crack, a vizinha da umbanda acusada de “magia negra”.

Ataques do tipo são recorrentes em uma sociedade que desaprendeu a lidar com derrotas — nem as dos planos pessoais nem as dos delírios coletivos. O período eleitoral é propício a isso.

É nessas horas que o segundo colocado joga fora a medalha de vice, maldizendo tudo à sua volta. No Brasil, a Geni da vez, e não é de hoje, é a região Nordeste — que, nas últimas eleições para presidente, tem demonstrado um desalinhamento político evidente com o restante do país. Esse “restante do país” tem na capital do estado mais rico um lema ilustrativo da situação: não sou conduzido, conduzo. E isso explica muita coisa.

Quando alguém começa a manifestar sua insatisfação com os votos de boa parte do país de alguma forma tira do armário o espírito do senhor de escravos atualizado em pose de patrão e de patroa: aquele que se autodenomina o “centro” de onde irradia todo o poder sobre corpos e subjetividades. Quem desobedece que vá pra rua — ou pra Cuba.

É como se o Brasil inteiro fosse um grande condomínio no qual os sinhozinhos combinam de não dar panetone no fim de ano para o porteiro porque ele não votou como os empregadores.

Essa conversa já estava à mesa em eleições anteriores. A corrente do “não dê panetone ao porteiro” já circulava por e-mail antes mesmo de a ultradireita virar modinha no país.

Só não dá para dizer que as coisas melhoraram de lá pra cá. Pelo contrário: a arrogância ficou ainda mais escancarada.

Aquela minha amiga afastada do meu círculo social é na verdade uma multidão, como mostrou uma reportagem recente da Folha de S.Paulo.

“Nós geramos empregos, pagamos impostos e gastamos nosso dinheiro lá no Nordeste. Não vamos mais ao Nordeste dar o nosso dinheiro para quem vive de migalhas”, disse em vídeo uma advogada e vice-presidente da OAB em Uberlândia (MG).

“O Nordeste deveria parar para pensar que quem vai lá e sustenta o turismo somos nós brasileiros que trabalha (sic) de verdade”, postou uma dentista do interior de Rondônia.

“Não conheço o Nordeste e não quero conhecer. Deus me livre desse lugar de gente horrorosa”, atacou uma advogada de Bragança Paulista (SP).

O pior é que todo mundo conhece um amigo ou parente que fala exatamente a mesma coisa, com a taça e os dedinhos levantados para cima, quando sente estar entre os “seus”. Alguns, trabalhados no ódio e na certeza da impunidade, só perderam o filtro e correram para ostentar a própria pobreza de espírito nas redes — além, é claro, da ignorância de quem não reconhece, nem quer reconhecer, as potencialidades de uma região rica e diversa que não se encerra em estereótipos.

O próprio presidente Jair Bolsonaro (PL), que passou a vida associando política distributiva a voto de cabresto, abriu a carteira para engordar o Auxílio Brasil e recebeu um sonoro “não” de quem avisou pelas urnas que suas convicções não estão à venda. Ele agora prefere associar a botinada ao suposto analfabetismo de quem o despreza.

Como disse o historiador Severino Vicente, da Universidade de Pernambuco, na reportagem da Folha, os ataques à população nordestina em tempos de eleição revelam um esforço de reduzir e negar ao outro o direito de ser quem ele é e dizer que “só interessa aquilo que é parecido comigo”. “O preconceito é filho da deseducação, daquele que não abre a cabeça (quando) observa o mundo”. Quando alguém decide expurgar seus demônios nas redes, é apenas sobre si que está falando.

Publicada originalmente no UOL
Imagem: Alexandre de Almeida/Arquivo Pessoal

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