Investigação, testemunhas e advogados: como as universidades lidam com casos de preconceito e assédio
Denúncias frequentes de racismo, assédio sexual e LGBTfobia têm levado universidades a formarem espaços e treinarem pessoas para lidar com casos internos envolvendo alunos, funcionários e servidores. As soluções variam.
Por Pâmela Dias e Bruno Alfano*
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por meio do Núcleo de Assuntos Disciplinares, expulsou em julho um aluno por crime de racismo, no primeiro caso analisado pela comissão de combate à prática criada pelo Conselho Universitário. O primeiro episódio avaliado, em uma escolha aprovada por votação unânime na comissão, foi o do doutorando de Filosofia Álvaro Hauschild, também indiciado em uma investigação policial por crime de racismo qualificado contra o estudante de políticas públicas Jota Júnior, que é negro.
Dois meses antes, a vítima havia registrado uma ocorrência na Polícia Civil após sua namorada, Amanda Klimick, ser abordada por Hauschild nas redes sociais. Na conversa, o doutorando afirmou à estudante que o negro “exala um cheiro típico“, “tem um cérebro programado para fazer o máximo de filhos que puder” e que “pode não ser um problema lá onde a natureza dá cabo deles“.
“Eu fiz a denúncia de racismo porque não foi um preconceito contra mim, mas contra todos os negros. Eu denunciei o caso nas redes também, falando que ele era doutorando, pois já existiam outros casos envolvendo ele dentro da universidade“, relata Jota.
– Mais 250 processos –
O estudante considera que a UFRGS demorou para avaliar o caso, mesmo com a mobilização nacional que houve a partir da denúncia. Hauschild foi expulso dias antes de defender sua tese de doutorado. Com esse caso concluído, a universidade tem outros 250 processos que aguardam análise, conforme dados do Núcleo de Assuntos Disciplinares.
O professor José Rivair, do Departamento de História da universidade, que presidiu a comissão responsável por julgar o caso, disse que alguns processos podem ser mais demorados que outros pela necessidade de realizar mais de uma escuta, tanto da vítima quanto do suspeito. Também há as etapas de apresentação da defesa, análise de documentos, ouvir especialistas e aguardar a aprovação da decisão pelo reitor. Outro ponto importante, segundo Rivair, é que os processos que envolvem racismo ainda são minimizados pela Justiça.
“O ex-doutorando teve dois processos caminhando em paralelo. O primeiro por atitudes neonazistas e homofóbicas. O segundo, pelo caso de racismo. Houve a escuta no núcleo, que contou com a participação de dois professores e um estudante para analisar a denúncia e reunir indícios. Também solicitamos e analisamos o inquérito policial junto a profissionais de direito antidiscriminatório. Mas o racismo institucional, infelizmente, também existe, tornando tudo ainda mais trabalhoso“, explicou.
– Denúncias nas ouvidorias –
A Universidade Federal do Paraná (UFPR) criou uma superintendência exclusivamente para a apurações de más condutas. Mas a maioria das 62 instituições federais ouve os denunciantes e investiga os casos nas pró-reitorias de Assuntos Estudantis ou de Graduação.
De acordo com a pró-reitora da universidade, Maria Rita de Assis César, que é também presidente do Fórum de Pró-reitores de Assuntos Estudantis da Andifes, a falta de um espaço único para lidar com os episódios de preconceito não é um fator que impede o julgamento das infrações. Ela aponta que cada universidade tem uma estrutura diferente.
Em geral, são formadas comissões ou coordenações que realizarão os inquéritos internos ouvindo as partes, reunindo documentos, provas, acusações e defesas. Dependendo do resultado, esses casos são compartilhados com a polícia e o Ministério Público. No final, as decisões em geral são ratificadas pelos conselhos universitários — órgãos máximos das instituições.
Na UFPR, a Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade foi criada em 2017. Segundo Maria Rita, a superintendência trabalha em duas dimensões: no acolhimento da vítima e na apuração das responsabilidades.
“Pelas discussões do Fórum, podemos dizer que há uma sensibilidade muito grande das instituições para o acolhimento e para os fluxos de encaminhamento de denúncias desses tipos. Mas há uma grande dificuldade em conseguir criar estruturas específicas, como a UFPR fez. Para isso é preciso a contratação de técnicos e a abertura de cargos comissionados, o que depende do Ministério da Educação“, afirma a pró-reitora.
Em 2019, o aluno de Ciências Sociais Danilo Araújo de Góis, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, também passou a ser investigado pela universidade, por atitudes racistas contra a professora Isabel Cristina Ferreira dos Reis, que é negra. Vídeos mostraram que o estudante se recusou a receber um papel das mãos de Isabel. A decisão pela expulsão, no entanto, só aconteceu em setembro de 2020.
Em relação ao caso e à punição, a universidade disse que recebe as denúncias em três diferentes departamentos no campus: a Ouvidoria, o gabinete da reitoria e o Núcleo de Admissibilidade e Acompanhamento de Procedimentos Disciplinares. Os casos são analisados com base na Lei de Processos Administrativos e no Regulamento de Graduação, informou a instituição. Depois, como nas outras universidades, o reitor decide sobre aplicação de penalidade. A decisão ainda é apreciada pelo Conselho Superior da instituição federal.
– Novos códigos –
Discussões sobre os códigos disciplinares são promovidas pelas universidades federais. Na maior parte das instituições, apenas casos de lesão corporal ou estupro levam a expulsões. Desde a criação da superintendência na UFPR, nenhum aluno recebeu essa punição. Segundo Maria Rita, os casos mais graves tiveram suspensões de 90 a 120 dias.
“Quando o processo avança e se encaminha para uma punição desse tipo, é normal que os alunos abandonem a matrícula e o processo é arquivado, seguindo o caso apenas na esfera criminal, quando cabe“, afirma a pró-reitora da UFPR, que diz ser sigiloso o número de punições já aplicadas. “Está na casa de dezenas“, limita-se a dizer.
Na avaliação de Ronaldo Mota, ex-secretário de Educação Superior do MEC e ex-secretário-executivo do Conselho Nacional de Educação, agressões cometidas dentro da universidade devem ser debatidas internamente e em profundidade.
“Isso me parece ser tremendamente didático para a comunidade universitária. Não defendo punições exageradas, mas o ato pernicioso realizado precisa ser explorado para não se repetir. No fim, pode haver punição. Mas é fundamental ampliar o debate, aumentar o nível de consciência da comunidade acadêmica e garantir que aquilo não aconteça mais“, afirma Mota.
Segundo ele, os colegiados são os instrumentos práticos dessas apurações. Mas essas decisões são balizadas pelos conselhos universitários, colegiados máximos — até acima do reitor — das universidades, formados por representantes da reitoria, dos professores, servidores e estudantes, o que pode impedir injustiças.
“Claro que é preciso garantir que o caso tenha ampla defesa, que as pessoas não sejam perseguidas além daquilo que elas devem responder pelo que fizeram. Mas, como no caso da UFRGS, alguma punição deve ocorrer. Senão, normaliza e vulgariza esse comportamento inaceitável“, defende Mota. “E as universidades dispõem de instrumentos para isso, com pessoas de carga cultural e histórica capazes para enfrentar esse debate“, conclui.
*Publicada no portal Extra, com edição na Redação VSP. Para ler o original clique aqui.
Foto: Amanda Klimik e namorado Jota Júnior que denunciou ter sido vítima de racismo na UFRGS/ Reprodução Agência O Globo
Siga o Viver Sem Preconceitos nas Redes Sociais
Curta, comente, compartilhe…
Vamos fazer do mundo um lugar melhor para se viver,
um lugar com menos preconceitos!
O Portal Viver Sem Preconceitos autoriza a reprodução de seus conteúdos -total ou parcial- desde que citada a fonte e da notificação por escrito.
Para o uso de matérias e conteúdos de terceiros publicados aqui, deve-se observar as regras propostas por eles.