Me chama de gorda!

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Como podemos criar novos lugares para fugir dos olhares massacrantes e da gordofobia cotidiana

Por Jéssica Balbino

Na poltrona de número 14B do voo 4279 entre Maringá (PR) e Campinas (SP), uma mulher branca, de aproximadamente 60 anos, me olha incessantemente e se espreme na poltrona ao lado, a 14A. Com medo de encostar em mim, ela segue sem conseguir tirar os olhos, incrédula. Sequer responde ao meu “Boa tarde, com licença”. Ela é magra. Eu, como vocês sabem, gorda.

Não é a primeira vez que isso ocorre num voo e nem será a última. Logo adiante, no ônibus que retira os passageiros da aeronave e leva até o hangar, a cena é um pouco diferente: me sento numa poltrona e a do meu lado vai vazia. As pessoas preferem se equilibrar e se esgueirar por entre as bagagens, em pé, a se sentarem do meu lado. Reclamo no Twitter porque estou desocupada, mas, sigo a vida. Tenho muito a fazer.

Na memória, penso nos dias vividos em Maringá para o projeto “Me chama de gorda”, idealizado pela atriz Aline Luppi e pela produtora cultural Rachel Coelho. É minha primeira vez na cidade paraense e estou completamente apaixonada: pelas pessoas, pelas ruas floridas com ipês roxos, pelo mercadão da cidade, pela gastronomia e, sobretudo, pelos encontros que foram possíveis.

E é só porque estes encontros são possíveis e eu, como disse na oficina “Lute como uma gorda”, transformo minha raiva em criação, é que consigo ressignificar a gordofobia cotidiana. Os olhares que anulam, como o da senhora que viajou ao meu lado no avião, como os das pessoas que recusaram o assento ao meu lado no ônibus, como todos os enviesados que despertamos: de crianças a idosos – sem esquecer dos adultos – no Parque do Ingá, também em Maringá.

como bem diz Aline Luppi no texto de abertura do projeto “mostrando a bunda e a banha”

A possibilidade de recontar nossas próprias histórias, como bem diz Aline Luppi no texto de abertura do projeto “mostrando a bunda e a banha” é o que nos devolve a humanidade roubada por tais olhares. É o que nos devolve para nosso próprio corpo, tomado com tanta violência a partir de quem, sem dizer uma palavra, nos lembra que estamos dissidindo da norma ao existir e ousar ocupar os mesmos espaços.

Como nos lembra Paul Preciado em “Testo Junkie”: “Eis aqui o desafio e a tentação de toda filosofia: correr atrás do corpo ou da cabeça. Mas e se a resposta fosse o próprio ato do mestre? Se a possibilidade da filosofia residisse não tanto na escolha entre a cabeça ou o corpo, e sim na prática lúcida e intencional da autodecapitação?”

Assim, nessa autodestruição, propomos então um novo lugar e diante do impossível: uma classe com cerca de 40 estudantes, às vésperas das férias escolares, excitados pelo trote do terceiro ano do ensino médio, para falar de gordofobia. E eis que a mágica acontece: na oficina “Gordofobia na adolescência”, ministrada ao lado da filósofa e doutora nos Estudos do Corpo Gordo Malu Jimenez no Colégio Estadual Tânia Varella Ferreira, pudemos ver os olhos dos jovens brilharem ao encontrarem, sobretudo, identificação.

Nos lançamos, cabeças na guilhotina, para tratar de um tema espinhoso, doloroso e que, ao final, resultou num choro convulsivo de alguns estudantes: gordos, é claro. E terminou num abraço delicioso em cada um deles, que entendeu exatamente onde os olhares – como o da senhora que viajou ao meu lado – machuca, anula e tira a humanidade.

Criar estes lugares – possibilidades de estranhamento é algo viciante. Reconhecer nossa própria monstruosidade (já falei disso aqui) e recusar a norma  e encarar o que somos na verdade: pessoas gordas. E se, desprovidas de humanidade, podemos ser o que quisermos.

Por isso, na oficina “Lute como uma gorda”, que também foi ministrada, mais uma vez, ao lado de Malu Jimenez, falamos sobre nossos medos e estimulamos os participantes a escreverem – usando a raiva como combustível – o que fariam se não existisse gordofobia. Os textos são os mais diversos possíveis – e devem virar um zine muito em breve (aguardem!), mas, mais do que isso, abrem brechas pra que não só nos sintamos bem entre pessoas que estão dispostas a nos ouvir, como criamos novos espaços e formas para isso.

Que bom! São estas novas formas de habitar o mundo – e partilhar da minha existência: caótica, imprevisível, errática e gorda é que dão sentido a tanta crueldade opressiva existente do lado de fora da porta.

No entanto, que gostoso criar bolhas e ficar dentro da proteção delas. Que bom que é podermos ter espaços para sermos quem somos e, mais do que isso: formar novos pensamentos – e pessoas, jovens, menos gordofóbicos. Que privilégio viver isso.

*Em tempo, vale lembrar que o projeto “Me Chama de Gorda’ começou no dia 25 de junho com uma série de intervenções performáticas pensadas e encenadas por Aline Luppi Grossi, como a “Trocando olhares”, a “Entre Quatro paredes”, a “Soul dessas/Beija eu”, “O que você anda engolindo?”, a “[HIPO]Campo” e a “Saindo do forno” e foi até o dia 23 de julho.

Todas as ações foram gratuitas e estimulam o debate acerca do corpo gordo a partir da arte. Elas revelam como a exclusão social e o estigma podem marcar uma existência, mas também evidenciam o corpo gordo e enaltecem o trabalho de outras mulheres gordas país afora.

O projeto reforça que o uso da palavra gorda, por vezes tão desviado, pode não ser pejorativo, mas definir apenas o que é: um corpo, sem conotação negativa, ofensiva ou xingamento. Uma existência.

Até lá, fica a máxima, que vale não apenas para o projeto, para a situação do avião, mas para o dia a dia. Não tenha medo. Vai, fala: ME CHAMA DE GORDA!

*Nota do editor: com o encerramento das atividades, o parágrafo foi editado.

Publicado originalmente no jornal Estado de Minas
Foto: Projeto “Me chama de gorda” – Renato Domingos/Divulgação

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Redação

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