Eu queria ter a sua coragem

Eu queria ter a sua coragem
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Como tal afirmação pode soar violenta e perversa aos nossos corpos

Por Jéssica Balbino

Já perdi as contas de quantas vezes eu ouvi: “ah! como eu queria ter a sua coragem”. E essa frase sempre me incomodou, porque eu fiquei pensando: coragem do quê, gente?

Eu tenho medo de estátua, de lagartixa, de escuro. Não salto de paraglider, não mergulho. Tenho p-a-v-o-r de bichos peçonhentos.

Coragem, definitivamente, não é meu forte. Mas, os avisos, disfarçados de elogios, chegam. “Você é tão corajosa, queria ser como você”.

Demorei muito tempo pra entender de qual coragem falavam. E, quando entendi, fiquei profundamente triste.

Quando dizem isso ao me ver de cropped, short curto, biquíni, no fundo, querem dizer: admiro sua coragem de, gorda assim, usar esse tipo de roupa. E, dizem, na verdade, na capacidade de não me importar ou de suportar o que vão dizer. Mas, esquecem que passa, inclusive, por esse lugar de falsa admiração.

O que me estão me dizendo não tem a ver com ousadia, mas com o fato de que eu sigo existindo, no meu corpo, apesar do tamanho dele, então, essa frase não me chega como um elogio. Nunca. Mas como uma violência.

Ela impõe, automaticamente, que eu seja forte. Que eu enfrente. Que eu desafie a lógica. Que eu seja “especial” por não me constranger de ser quem eu sou e só existir.

E, Deus me livre de querer essa força. Eu quero poder fracassar – falei sobre isso nessa coluna, inclusive.

Toda vez que alguém aponta minha “coragem”, sobretudo por eu me sentir bem no meu coro, está marcando um lugar dizendo que eu não deveria. É sempre uma tentativa, ainda que sofisticada, de constranger minha existência. De me lembrar que eu não sou magra o suficiente pra existir, mas que essa pessoa que enuncia admira meu esforço em teimar e, ainda sim, estar aqui, existindo.

Essa coragem, da qual dizem, é quase um prêmio de consolação, mas um lembrete do meu não pertencimento. Ela diz, nas entrelinhas: você até se esforça, mas jamais será como nós.

Me recuso, então, a ser essa “pessoa corajosa”. Eu não quero ter que enfrentar nada. Eu já disse e repito: eu só quero existir. E, me marcar como corajosa é só mais uma tentativa de anulação.

Posar de lingerie na timeline não requer coragem, requer autoconhecimento e sensualidade. Chamar de coragem anula o trabalho que há ali e convoca a uma posição de afronte que, não necessariamente, existe.

A coragem supõe enfrentamento e eu não quero estar em batalha, ainda que poder existir no meu corpo seja estar sempre em disputa.

Que esta, narrativa, não seja batalha ganha!

Quando alguém se posta diante da minha imaginaria “coragem” e me assiste tentar existir, há uma passividade de quem se posta diante de uma jaula no zoológico e assiste a uma foca fazer malabarismos.

É tão passivo que parece que, pra justificar a própria covardia diante da vida vocês precisem dizer que temos coragem.

Paul Preciado, no texto “A coragem de ser você mesmo” reforça isso:
“Quando vocês vão se cansar de nos tratar como alteridade para se tornar vocês mesmos?”
Cadê vossa coragem? Eu perguntaria.

É mais cômodo dizer que sou corajosa – porque uso cropped, posto nudes, vivo minha sexualidade, não me furto às experiências da vida, escrevo a partir da autoficção de quem sou – e me exponho mesmo. Defendo pautas sobre diversidade e caminho ao lado de quem, assim como eu, está mais interessado em amar e botar os corpos pra jogo no que em toda essa regulação – do que reconhecer que esse é meu lifestyle. Não requer coragem pra vivê-lo, mas requer estar em paz com o fracasso. Estar em paz com a expectativa de agradar o status quo. Essa é a minha vida e eu vivo com desejo, matando a culpa diariamente. Vivo com alegria.

E não teria como vocês saberem disso, já que passam seu tempo odiando e/ou tentando justificar a suposta coragem que vocês não tem – mas pensam que tenho.

Não é sobre enfrentamento, mas sobre aceitar os riscos e fazer valer. É sobre a vida que se quer ter. E a minha inclui uma grande dose de fracasso e alegria.

Talvez seja mais fácil chamar-me de corajosa a encarar que eu não tento mais caber: em roupas, espaços, expectativas. Eu não me esforço pra ser como vocês ou ter uma vida de mentira, parecida com a de vocês. Eu criei meu mundo, minha vida. Convidei todos meus demônios pra entrar e servi-lhes um café fresco. Fizemos uma grande festa e isso não pediu coragem, mas desejo. Criei uma vida da qual, quem quer ser como eu – corajosa – não faz parte, porque essa vida nasce justamente do fracasso.

Meu fracasso é o seu pior pesadelo. Ele ameaça as frágeis estruturas de um mundo distintivo, onde eu faria de tudo pra entrar e, sem conseguir, teria coragem pra enfrentar. Mas não, eu só existo em outro mundo, com você do lado de fora dele.

A vocês, desejo então a coragem que enxergam

A vocês, desejo então a coragem que enxergam. Usem-na pra malhar diariamente, pra fazer dietas insanas, pra perseguirem o que entendem como “corpo perfeito”, pra alcançarem os dígitos “ideais” na balança. Pra evitarem o fracasso. Pra amarem de forma reta, monogâmica e heterossexualizada. Pra julgarem raça. Pra empurrarem o único brigadeiro pro lado. Pra resistirem à alegria do segundo pedaço de pizza. Pra tentarem ser felizes à sua maneira.

Desejo-lhes a coragem que enxergam em mim pra viverem em seus corpos fabricados e sem prazer.

E a quem caminha comigo, que abraça o fracasso, desejo-lhes a ausência de coragem, o tédio diante da normatividade, a falta de vontade de lutar guerras que não são nossas. Desejo que seus corpos existam no mundo – seja esse universo qual for – e que a sensualidade seja a arma quente dos dias em que seja possível celebrar quem somos: frágeis, fracos, desejosos, com fome de vida, de mundo e capazes de revolucionar nossas existências bem distante da mediocridade que encaixota os sonhos.

Desejo-lhes a liberdade de desejar e criar. Desejo-lhes todas as experiências de afeto e revolução possíveis nesses corpos.

Publicado originalmente no jornal Estado de Minas
Foto: João Paulo Ferreira/EM/DA PRESS

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