Tá repreendido seu racismo religioso!

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Entre os muitos caminhos que levam ao racismo religioso, políticos e autoridades públicas usam a religião para justificar suas ações e ganhar apoio popular. De onde surge a influência religiosa que ainda desempenha papel significativo na sociedade brasileira desde a colonização?

Por Fabiana Conceição*

Em viagem para São Paulo, usei o serviço de carro por aplicativo e o motorista era um rapaz jovem, na faixa dos 25 anos. Mal entrei e ele começou a falar versículos bíblicos e foi me fazendo perguntas. Perguntou se eu tinha religião, se tinha pessoas evangélicas na minha família e me orientou a procurar uma igreja.

Em algum momento falei que era da Bahia e ele espantado, disse:

Nossa! Me falam que lá é bem difícil, tem muito macumbeiro, né? Os irmãos falam da cruz que é evangelizar lá!“.

Ele não parou. Na verdade, ele não queria ouvir, trocar, ele queria falar, destilar suas crenças e racismo contra as religiões de matriz africana. Ele esqueceu todas as passagens bíblicas que me falou no primeiro momento que entrei no carro e agora estava focado em me evangelizar. Acredito que ser uma mulher preta da Bahia deva ter contribuído para ele acreditar que eu era de religião de matriz africana e viu ali uma oportunidade de “ganhar uma alma”, como ele mesmo citou várias vezes.

Eu estava super cansada da viagem, queria argumentar, mas não tinha forças para entrar em uma discussão que, no final,  não levaria a nada, uma vez que ele já apresentava inflexibilidade na comunicação. Ele estava pregando! E eu realmente não acredito que qualquer tipo de discriminação, preconceito ou racismo podem ser tratados com conversas dentro de um carro por 20 minutos.

Faz parte da construção social deste país evangelizar e demonizar as religiões que não pregam o cristianismo. As diferenças religiosas foram usadas para justificar a opressão e discriminação das religiões de matriz africana que até 1976, os terreiros na Bahia precisavam pedir autorização policial para realizar suas atividades.

Infelizmente, não há como não fazer ligação entre o crescimento exponencial do número de igrejas evangélicas nos últimos anos e o aumento do discurso de ódio e violência contra religiões de matriz africana.

Segundo o Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP), as igrejas evangélicas abriram, em média, 17 novos templos POR DIA no nosso país. E cruzando os dados acima com o apresentado pela BBC News o qual aponta que o número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil aumentou 106% em um ano, passando de 583 em 2021 para 1,2 mil em 2022. A maioria das denúncias foi feita por praticantes de religiões de matriz africana e seis em cada dez vítimas são mulheres. Nos primeiros 20 dias de 2023, foram registradas 58 ocorrências pelo Disque 100.

Complementando, a polícia civil de São Paulo traz dados do primeiro trimestre deste ano em que foram registrados 181 casos de intolerância religiosa em todo o estado e as denúncias estavam relacionadas a confronto físico, tipificados como “vias de fato”, ameaças, injúria, difamação, lesão corporal, dano e perturbação do ato religioso.

É importante ressaltar que nem todas as igrejas evangélicas praticam o racismo religioso, mas é inegável que muitas delas têm sido palco de incitação à violência quando seus líderes disseminam discursos de ódio, contribuindo para a perpetuação do racismo religioso e violência contra religiões de matriz africana.

Neste caso, especificamente, faz-se necessário também nomear corretamente o que chamam de intolerância religiosa, pois, na verdade, é racismo religioso. No Brasil, os terreiros não são atacados só pelo preconceito religioso, mas também pela associação histórica dessas religiões com a África e a população negra.

É essa motivação racial que está por trás dos ataques. Por que não houve um aumento significativo nem casos frequentes de intolerância religiosa contra templos budistas ou espíritas, por exemplo? A resposta está na história de discriminação e marginalização que a população negra enfrenta no país. O racismo religioso é apenas uma faceta do racismo estrutural enraizado na sociedade brasileira.

Dizer que nosso país é laico não tem surtido efeito na prática assim como a existência da Constituição Federal de 1988, que garante a liberdade de consciência e de crença bem como o livre exercício dos cultos religiosos não tem sido eficaz. O Código Penal Brasileiro também estabelece como crime escarnecer publicamente alguém por motivo de crença religiosa e impedir ou perturbar cerimônias religiosas assim como o Estatuto da Igualdade protege o direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos.

Infelizmente, a influência religiosa ainda desempenha um papel significativo na sociedade brasileira desde a colonização, e ainda vemos com naturalidade políticos e autoridades públicas usarem a religião para justificar suas ações e ganhar apoio popular. Por isso tudo, 20 minutos dentro de um carro, com este assunto em pauta, não é suficiente nem resolutivo para um problema estrutural como esse.

A aplicação severa da lei e a responsabilização criminal dos líderes religiosos e também dos meios de comunicação, por onde são propagados discursos de ódio, são alguns dos caminhos nessa luta contra essa estrutura social e uma bancada evangélica que tem poder de influência em  nossas vidas, formulando políticas públicas,  influenciando as relações interpessoais, o direito de ir e vir e também a liberdade de cada pessoa viver a sua espiritualidade, seja em nome de Buda, Cristo ou Exu.

*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP

Fabiana Conceição
Colunista VSP

Baiana, mulher negra, mãe de Janaína e Dandara, Fabiana é pedagoga com especialização em psicologia organizacional e diversidade e inclusão e tem pós em Gestão de Projetos. Pesquisadora e palestrante sobre o tema Racismo e Preconceito, é educadora antirracista. É ainda especialista em desenvolvimento de talentos e diversidade, equidade e inclusão na Talento Incluir.

Foto: Agência Brasil/Arquivo

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