Já podemos parar de ser transfóbicos

Já podemos parar de ser transfóbicos
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Sob pretexto de “não dar munição para a direita” vivemos vários episódios onde infelizmente figuras, influenciadores e páginas de esquerda resolveram se alinhar a discursos transfóbicos

Por Juan Manuel P. Domínguez*

Estamos chegando ao final de 2024 e podemos afirmar que esse foi um ano de bastante retrocesso nas pautas urgentes enquanto direitos individuais dos setores populares. Sob pretexto das campanhas municipais ou de “não dar munição para a direita” vivemos vários episódios onde infelizmente figuras, influenciadores e páginas de esquerda resolveram se alinhar a discursos transfóbicos e estigmatizantes da população trans. O que resulta bastante desonesto, considerando o apelo com que quase toda a asa esquerda partidária se autointitula defensora das “minorias” (entre várias aspas) e reclama quase sem vacilo, o voto dessa população em todas as eleições do Brasil.

Tertuliana Lustosa, você precisa manter o decoro

Sabemos há muito tempo que dentro do debate político não tem nada mais nocivo que o dito “questionamento moral”. Criada em Salvador, a historiadora, pesquisadora e cantora piauiense Tertuliana Lustosa virou notícia ao fazer uma dança erótica na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O realmente chamativo foi como páginas de esquerda foram as primeiras a se escandalizar com uma dança funk da historiadora, algo que durou apenas segundos dentro de uma apresentação que durou mais de uma hora. Sem fazer menção nenhuma à trajetória da intelectual, ao caráter da apresentação do livro, várias das páginas de esquerda mais importantes do país, e influenciadores, publicaram vários post xingando Tertuliana, insultando-a, o que motivou, claro está, uma chuva de comentários insultantes nas redes sociais da historiadoras. Um dos episódios mais covardes que já vi a esquerda suscitar na minha vida toda. Mas, vamos lá. O que há de válido nessa reclamação da “esquerda iluminada” para com a historiadora?

A historiadora realizou uma performance que faz parte da construção simbólica da qual forma parte o livro: “Mulheres trans são terroristas”. No sentido literal não são. No sentido simbólico, dentro de uma sociedade cristã conservadora e hetero patriarcal, um corpo trans é, de fato, um corpo que produz terror, por consequência, é um corpo terrorista. Mas, será que quem ficou escandalizado pela performance da Tertuliana pisou sequer alguma vez uma faculdade de ciências humanas?  

Porque, eu sim, fiz jornalismo e literatura.

Bom, poderia citar, por exemplo, que quando você estuda história da arte OCIDENTAL você se depara com vários, vários, vários, vários, corpos nus! Esculturas gregas, quadros renascentistas, modernistas, vanguardistas, pós- modernistas, etc!. Meu, se tem algo que você vai ver na história da arte vão ser corpos nus! Claro, estamos faltando de corpos cis hetéros. Então, aparentemente isso não escandalizaria ninguém nem quebraria nenhum “decoro académico” que tanto reclamam esses novos moralistas (diga-se transfóbicos) de esquerda.

Na literatura… o que dizer? Kerouac, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Henry Miller, Marquês de Sade… eu simplesmente não conseguiria enumerar a quantidade enorme de escritores que produziram obras muito, muito mais fortes e sexuais que 10 segundos de dança funk, porém, claro, estamos falando de literatura hetero-sexual. E com certeza, isso não estaria violando o estatuto do “decoro acadêmico”

Eu sou um dos tantos que acredita que as discussões dentro da esquerda precisam ser debatidas primeiro dentro do campo da esquerda. Porém, o episódio com a Tertuliana resultou-me demasiado indignante para não me pronunciar.

A transfobia no Brasil acarreta consequências graves, refletindo-se em altos índices de violência e exclusão social contra pessoas trans e travestis. O país figura entre os mais perigosos para essa população, com um número alarmante de homicídios e agressões motivadas pela transfobia. Além da violência física, pessoas trans enfrentam desafios no mercado de trabalho, resultando em altos índices de desemprego e, frequentemente, em marginalização. A discriminação também se estende ao acesso à educação e saúde, onde o preconceito e a falta de preparo das instituições levam ao abandono escolar e à desassistência médica. A transfobia contribui ainda para o sofrimento psicológico, com taxas elevadas de depressão e suicídio entre pessoas trans. Combater a transfobia é, portanto, essencial para promover uma sociedade mais inclusiva e justa, onde os direitos humanos sejam assegurados para todos.

Espero que dentro de pouco possamos parar de falar de “pautas identitárias”. Se ainda hoje se fala de “pautas identitárias” é porque assumimos com isso que existem grupos sociais que ainda lutam para instaurar como legítima sua identidade. Talvez seja por isso que os que mais utilizam o termo “identitarismo” sejam pessoas cis. Eu prefiro falar de lutas dos setores populares pelos seus direitos individuais. Desta forma, vamos deixar de estabelecer hierarquias de pautas urgentes no Brasil, porque não há, de fato, tais hierarquias. O salário de um trabalhador não é mais urgente que a violência contra pessoas lgbtqia+, não é mais urgente que a equivalência de salários entre homens e mulheres. A esquerda nunca cresceu se escondendo e simulando não se importar com determinados assuntos.

Podemos então deixar de ser transfóbicos agora? As eleições passaram, a esquerda como um todo foi muito mal em todo o país. O que tal se agora a gente se atreve a ser quem a gente é? Sem medo do que o conservadorismo evangélico possa pensar?’. Esse “pragmatismo” ao qual vem se apelando, além de não ter dado resultado nenhum, está parecendo uma mera covardia de pessoas cis para não aceitar o medo da perda de privilégios à qual se acham expostos. Atacar uma parte dos setores populares sob escusa de que não podemos falar sobre isso porque seria “fazer o jogo da direita” é ir contra uma tradição milenar da esquerda: estar e permanecer do lado dos excluídos, sob quaisquer consequências. Argumentar que deve existir respeito ao decoro acadêmico, na faculdade de ciências humanas, onde o que prevalece é o estudo do comportamento humano e a suas vertentes na comunicação social, é mesquinho e covarde. A esquerda nunca permitiu que a direita marque a pauta. E, sim, a violência contra pessoas trans é urgente, está no nosso cotidiano em todo o Brasil e, para mudar qualquer coisa, sempre foi preciso primeiro falar sobre.

*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP

Foto: Alejandra M. Sainz/Pexels
Matéria publicada originalmente no Portal Mídia Ninja

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