Meu cabelo, minhas regras: pra quem?
Antes de uma entrevista de emprego, você se preocuparia com o impacto que o estilo do seu cabelo pode causar? Sim ou não, seja qual for sua resposta, veja como o racismo funciona de forma silenciosa e cruel
Por Fabiana Conceição*
Recentemente, recebi uma mensagem que me despertou sentimentos de raiva, empoderamento e medo, além de me trazer o peso de uma difícil resposta. A pessoa me procurava buscando orientação sobre um dilema: como deveria usar o cabelo em uma entrevista de emprego.
A mensagem dizia:
“Oii Fabi, como você está? Pode me ajudar com um conselho? Tenho uma amiga participando de um processo seletivo, mas ela está insegura com a aparência por ser lésbica e ter o cabelo curto. E, no momento, ela fez tranças, então está pensando se tirar seria melhor para a entrevista. O que você acha?“
Queria muito responder o que acho, mas o que acho não põe comida na mesa das pessoas! Queria dizer para ela ir com as tranças e, se a empresa não aceitasse, ela estaria se livrando! Esse seria o sonho, não é? Poder simplesmente ser quem somos, sem temer julgamentos e perdas de oportunidades.
A verdade é que a maioria das pessoas negras, LGBTQIA+, periféricas, com deficiência, ainda não têm o luxo de escolher onde trabalhar. Elas trabalham para sobreviver. As contas não esperam que encontremos o lugar ideal, aquele que nos respeite e nos aceite como somos.
A nossa aparência, a nossa cor, a nossa orientação sexual ainda determinam os espaços que podemos ocupar.
Guardei minha primeira resposta e sugeri que ela desse uma olhada nas redes sociais da empresa, observasse as pessoas que trabalhavam lá e sentisse o ambiente. Talvez, com sorte, ela visse alguém com cabelo crespo, tranças, ou qualquer sinal de que a empresa valoriza a diversidade.
É assim que o racismo funciona, silencioso e cruel. Uma pessoa branca provavelmente nunca pararia para pensar no impacto do seu estilo de cabelo antes de uma entrevista de emprego. Esse tipo de preocupação não seria um fator decisivo. Mas, para nós, mulheres negras, é!
E por mais que hoje eu vá de tranças, de black bem grandão, de roupas coloridas sem hesitar, a Fabiana de anos atrás estaria no mesmo dilema e sofrimento.
A Fabiana de antes, assim como tantas mulheres negras hoje, não tinha – e muitas ainda não têm – o privilégio de ser livre para usar o cabelo que quiser, se vestir e ter sua existência plenamente respeitada.
Essas escolhas, que podem parecer superficiais, como alisar o cabelo ou tirar as tranças, são na verdade formas de violência racial. Elas nos forçam a esconder nossa identidade para nos adequarmos a um conceito de profissionalismo que reflete o racismo estrutural que vivemos.
A pressão de se sustentar e permanecer no mercado nos empurra a tomar decisões que, disfarçadas de escolhas onde abrimos mão da nossa singularidade para nos encaixar em padrões que não foram feitos para nós.
Patrícia Hill Collins disse que certos estereótipos funcionam como moldes sociais, restringindo quem pode ser aceito como adequado. Essas imagens de controle moldam nossas escolhas, ditando como devemos nos vestir, nos portar e até arrumar o cabelo para sermos vistas como profissionais.
Um estudo do Instituto Sumaúma e da agência RPretas revelou que oito em cada dez mulheres negras veem seus cabelos crespos e cacheados como uma ferramenta essencial de expressão pessoal. No entanto, 70% delas se sentem pressionadas a alisar o cabelo para se adequar a um padrão.
Essa estatística por si só evidencia o peso que carregamos: embora reconheçamos nosso cabelo como uma parte essencial de nossa identidade, enfrentamos a pressão para modificá-lo por não se encaixar nos padrões e ideais de beleza impostos.
Outra pesquisa, realizada pela Dove em parceria com o LinkedIn, revelou que o cabelo das mulheres negras, quando apresentado em suas texturas naturais ou em penteados como tranças, é 2,5 vezes mais propenso a ser considerado pouco profissional.
Um ponto importante que preciso destacar é que não estamos tratando apenas de raça. Quando analisamos com uma perspectiva interseccional, a violência vai muito além disso. Estamos falando de uma mulher negra e lésbica, com cabelos curtos em tranças, que enfrenta uma combinação de violências relacionadas a gênero, raça e orientação sexual.
A cada camada que se acrescenta, a pressão aumenta, tornando a experiência de ser quem somos no ambiente de trabalho ainda mais dolorosa.
E sabe o impacto?
A discriminação racial retira R$ 14 bilhões da renda de trabalhadores negros no Brasil segundo o Núcleo de Estudos Raciais do Insper.
Se levarmos em conta a sobreposição de marcadores, como ser mulher, negra, lésbica e periférica, as perdas são, sem dúvida, ainda maiores. Isso explica as diversas estatísticas que mostram a nossa predominância na linha da pobreza.
No final, a amiga escolheu tirar as tranças para ir a entrevista. Eu ainda não sei o resultado da entrevista, mas estou torcendo muito por ela, que ela passe na entrevista, que ela possa voltar a usar as tranças e ser quem é, sem medo.
E torço também para que ela não passe por muitas das agressões que já enfrentei no ambiente de trabalho. Quando usava black, faziam perguntas sobre se eu lavava; de tranças, perguntavam como eu conseguia ficar tanto tempo sem lavar a cabeça, e sempre tocando e mexendo nos meus cabelos sem consentimento, como se eu fosse uma pessoa escravizada sendo avaliada para ver se valia a compra.
E nem vou falar de todas as piadas disfarçadas de brincadeiras que me machucavam e eu tinha apenas que sorrir e acenar para não ser taxada de raivosa, barraqueira e perder meu emprego.
A liberdade de ser, seja no trabalho ou na vida, ainda não é um direito. É um privilégio com cor endereçada.
Sabemos que a pergunta não é sobre o cabelo, sobre usá-lo preso ou solto. A questão central é o preço que pagamos por sermos pessoas negras que precisam sobreviver. Infelizmente, para a maioria dos empregadores, pouco importa as qualidades e competências das pessoas. A cor da pele, o tipo de cabelo e o endereço chegam antes e influenciam as decisões de quem contrata.
*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP
Fabiana Conceição
Colunista VSP
Baiana, mulher negra, mãe de Janaína e Dandara, Fabiana é pedagoga com especialização em psicologia organizacional e diversidade e inclusão e tem pós em Gestão de Projetos. Pesquisadora e palestrante sobre o tema Racismo e Preconceito, é educadora antirracista. É ainda especialista em desenvolvimento de talentos e diversidade, equidade e inclusão na Talento Incluir.
Foto: Chimamanda Adichie, escritora – Por: Mamadi Doumbouya/Vulture
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