Psicologia Preta
Setembro Amarelo nos convida a falar sobre saúde mental, e é fundamental lembrar que essa conversa só faz sentido se for inclusiva. Precisamos colocar uma lupa sobre o sofrimento psicológico das populações marginalizadas
Por Fabiana Conceição*
Quando olhamos para a população negra, o racismo estrutural nos coloca em situações cruéis que afetam diretamente nossa mente e emoções. Como disse Frantz Fanon: “Não somos apenas corpos, mas mentes que lutam para entender e resistir ao que nos é imposto”.
Metade da população brasileira é composta por pessoas negras, mas essa representatividade não se reflete nas posições de destaque ou nos espaços de poder. Isso tem um impacto direto na autoestima e no equilíbrio emocional das pessoas negras, onde o racismo tem raízes profundas que nos desumanizam, excluem do ideário de beleza, de poder e de intelectualidade.
Neuza Santos Souza, psiquiatra, psicanalista e pioneira nos estudos sobre as relações raciais e seus impactos psíquicos, afirmou que o racismo deixa uma ferida profunda que parece nunca cicatrizar. O racismo abala nossa confiança, nos faz sentir que não pertencemos, que não somos suficientes.
Para muitas pessoas negras, essa experiência começa desde cedo. Desde a infância, somos expostos a situações que reforçam a ideia de que não fazemos parte dos espaços de poder ou prestígio. Isso não só afeta nossa autoestima, mas também cria uma sensação de constante vigilância e desconfiança.
É como se estivéssemos sempre lutando para provar que somos dignos de ocupar qualquer espaço, seja na escola, no trabalho ou até mesmo em nossos círculos sociais.
E fazer terapia ainda é tabu e inacessível para a maior parte da população, que enxerga o tratamento como elitizado e distante. Mesmo os que têm oportunidade de fazer um acompanhamento, ainda sofrem com a falta de um atendimento adequado, que realmente lide com os traumas causados pelo racismo.
Outro dia, conversando com uma amiga, ela me contou sobre o desafio de sua filha, uma mulher negra, que passou por vários profissionais que inviabilizavam sua dor e só conseguiu avançar quando encontrou uma profissional preta, que a acolheu levando em conta sua cor e as vivências que decorrem em cima disso.
O processo terapêutico de uma pessoa negra só pode ser eficaz quando suas dores são reconhecidas e validadas, disse Neuza Santos Souza.
Os últimos dados sobre a cor dos profissionais de psicologia no Brasil, de 2014, revelaram que apenas 16,5% dos profissionais eram negros. A maioria das pessoas que cuida de nossas mentes não sabe o que é viver na nossa pele.
Você pode se perguntar: “Mas Fabi, uma pessoa branca não pode ser psicóloga de uma pessoa negra?” Claro que pode. Mas é fundamental levar em consideração nossa estrutura racial, a experiência social do profissional e, mais ainda, a forma como a psicologia tradicional é abordada, baseada em referenciais eurocêntricos que ignoram as especificidades da experiência negra.
E por isso, a Psicologia Preta surgiu como uma resposta a essa necessidade, articulando a psicologia com as teorias sociais e as vivências das pessoas negras. Diferente da psicologia tradicional, que muitas vezes desconsidera as questões raciais, a Psicologia Preta coloca o racismo e a experiência da população negra no centro da discussão. Ela reconhece que nossa dor não é apenas individual, mas também coletiva, histórica, atravessada por séculos de desumanização.
A Psicologia Preta oferece um espaço onde podemos falar sobre nossas feridas, sem medo de sermos silenciados ou invalidados. Esse espaço de acolhimento é essencial para que possamos explorar as complexidades da nossa dor, reconhecendo que ela não é fruto de falhas pessoais, mas de um sistema que, por séculos, tem nos oprimido.
Mais do que curar feridas individuais, a Psicologia Preta busca resgatar a dignidade coletiva, ajudando a criar uma narrativa onde a população negra possa tirar o peso de gerações de traumas.
Neuza Santos Souza e Frantz Fanon nos ensinaram que é preciso falar sobre o racismo para curar as cicatrizes profundas que ele deixa em nossas mentes.
Lutar por saúde mental é também lutar contra o racismo. Precisamos de políticas públicas que reconheçam o quanto o racismo nos afeta e criem espaços de acolhimento e cuidado para a população negra.
Reconhecer nossa dor e oferecer um ambiente onde ela possa ser trabalhada de forma adequada é um passo fundamental na luta por justiça, igualdade de oportunidades e bem-estar.
*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP
Fabiana Conceição
Colunista VSP
Baiana, mulher negra, mãe de Janaína e Dandara, Fabiana é pedagoga com especialização em psicologia organizacional e diversidade e inclusão e tem pós em Gestão de Projetos. Pesquisadora e palestrante sobre o tema Racismo e Preconceito, é educadora antirracista. É ainda especialista em desenvolvimento de talentos e diversidade, equidade e inclusão na Talento Incluir.
Foto: Afrosaúde
Siga o Viver Sem Preconceitos nas Redes Sociais
Curta, comente, compartilhe…
Vamos fazer do mundo um lugar melhor para se viver,
um lugar com menos preconceitos!
O Portal Viver Sem Preconceitos autoriza a reprodução de seus conteúdos -total ou parcial- desde que citada a fonte e da notificação por escrito.
Para o uso de matérias e conteúdos de terceiros publicados aqui, deve-se observar as regras propostas por eles.