A gente se fala no olhar

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O papel do falar e do entender no entreolhar das pessoas negras

Por Fabiana Conceição*

Meu marido estava falando outro dia sobre ter ido a algum lugar e ter visto outro homem preto e como eles conversaram com o olhar por serem os únicos no local. Ele perguntou se nós, mulheres negras, também fazíamos assim.

Essa conversa rendeu muito porque comecei a lembrar de todos os eventos que participo, onde as pessoas negras são sempre a minoria. Sempre nos entreolhamos, assentimos com a cabeça, fechamos levemente os olhos e, mentalmente, dizemos: que bom te ver aqui, estou feliz que também esteja aqui! Isso é o que imagino ser dito, pois é normalmente o que penso.

Durante essa conversa, lembrei de uma história que vivi há mais de 15 anos. Eu trabalhava na rodoviária de Salvador e, no final da tarde de um sábado, um rapaz que trabalhava no aeroporto apareceu com um homem negro, refugiado de algum país africano, cujo nome infelizmente não lembro. O homem não falava português nem inglês e precisava ir para São Paulo.

Eu sabia disso porque ele tinha um papel com o nome da cidade de São Paulo e uma numeração. O rapaz que trabalhava no aeroporto fez o favor de levá-lo à rodoviária, pois estava saindo de plantão e era caminho, então o deixou lá.

A empresa onde eu trabalhava não fazia o percurso para São Paulo, e eu não sabia se ele tinha condições de pagar a passagem. Ele estava com uma expressão de desespero. Passei meia hora fazendo mímicas com ele, até que ele fez sinal de telefone e apontou para o número no papel. Não era um número do Brasil, e, sem pensar, peguei meu celular com crédito pré-pago e liguei para o número.

Chamou!

Atenderam!

Falei que estava com uma pessoa que queria ir para São Paulo e estava com aquele número. O homem do outro lado falava um pouco de português e eu consegui entender. Ele pediu para falar com a pessoa e disse que eram irmãos.

Eu pensei: lá se foi meu crédito!

Eles conversaram, e depois o homem passou o telefone para mim. Expliquei tudo sobre a viagem, e ele me pediu que ajudasse comprando a passagem. O homem só tinha dólar. Eu comprei a passagem no meu cartão, e ele me pagou.

Levei-o até o ônibus, orientei o motorista, expliquei tudo e passei o número do irmão. Fui me despedir, desejar boa viagem, e ele falou muita coisa que, claro, eu não entendi. Aí, ele pegou meu braço, colocou ao lado do dele e esfregou meu braço e depois o dele, fez sinal de igual e gesto de punho cerrado.

Entendi. Eu entendi que éramos negros, iguais, e devíamos nos apoiar para vencer. Essa foi uma experiência muito marcante para mim por todo o contexto, e sempre me pego perguntando por onde aquele moço deve estar…

Espero que bem!

Como disse, dentro da minha rotina, principalmente em espaços onde somos minoria, é comum que pessoas negras se cumprimentem com um aceno de cabeça, um sorriso, mesmo sem se conhecerem.

As pessoas negras, quando foram escravizadas, vieram de diferentes lugares dentro do continente africano, com idiomas, dialetos e culturas diferentes – uma estratégia para dificultar a comunicação e a organização de revoltas e a formação de uma resistência organizada.

Mas conseguimos desenvolver formas de comunicação para driblar a vigilância e construir estratégias que nos livrassem das condições escravocratas. Acredito que esse comportamento venceu as barreiras do tempo e ainda hoje, em condições diferentes, mas ainda desafiadoras, usamos gestos para mostrar que nos respeitamos e estamos felizes em nos ver em lugares que ainda julgam não serem nossos ou comuns a nós.

Mas também é uma forma de nos potencializarmos, de nos admirarmos, de reverenciarmos nossa estética, nossa beleza, nossa coragem, nossa luta, nossa vida, apesar de tudo que passamos.

Nós somos herdeiros de uma história de resistência, e cada olhar trocado, cada gesto de reconhecimento e acolhimento é um lembrete poderoso de nossa força coletiva.

Nesse olhar eu também desejo que continuemos a trilhar um caminho de conquistas e a ocupar espaços com a dignidade e o respeito que sempre nos foram devidos.

Asè!

*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP

Foto: Imagem produzida a partir de IA por Fabiana Conceição

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