Eu sou uma agente de cura intergeracional

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Eu me sinto como uma ferramenta de transição, que reduz dores para minhas filhas e acalenta as dores da minha mãe, que neste momento está acalentando as dores da minha avó de 95 anos

Por Fabiana Conceição*

No último Dia das Mães, enviei uma mensagem à minha mãe, expressando minha profunda gratidão por tudo que ela fez e faz por mim, tentando amenizar a culpa que ela sente principalmente nesta data por diversas situações que enfrentamos juntas.

Agradeci e falei que ela fez o seu melhor que podia com os recursos que tinha à disposição e que sou eternamente grata por tudo que ela me proporcionou.

Desde que me tornei mãe, entendi tantas coisas e intenções da minha mãe que hoje busco aliviar a sua culpa, que é comum para muitas mães que têm o sentimento de que não fizeram o suficiente por seus filhos e filhas.

Como nesta coluna trago sempre o recorte de raça, não posso deixar de analisar essa questão sob a perspectiva racial e a importância de reconhecer o contexto histórico e social que moldou a experiência das mulheres negras na maternidade.

Historicamente, as mulheres negras escravizadas, principalmente as que trabalhavam na casa grande, foram e ainda são em muitas casas, chamadas de “mães pretas”.

Essas “mães pretas” eram responsáveis por cuidar e amamentar os filhos das sinhazinhas, enquanto seus próprios filhos eram separados delas logo após o nascimento, privados de afeto, cuidado e amamentação.

Mesmo após a abolição da escravidão, a maioria das mulheres negras foram obrigadas a trabalhar como empregadas domésticas, continuando a desempenhar o papel de “mães pretas” para outras famílias, trabalhando aos fins de semana, folgando uma vez por mês e mal podendo ver e cuidar de seus próprios filhos.

Aquelas que não dormiam no trabalho, ao chegar em casa com pouco tempo e energia para educar e cuidar de seus filhos, tinham como recurso a comunicação e ações rápidas, diretivas e muitas vezes violentas para tentar garantir que suas crias não entrassem para o crime ou não vivessem a paternidade e maternidade precoce.

Era muito pouco tempo para explicar as dificuldades da vida, orientar e incentivar a busca de uma vida melhor diante de tantos desafios.

A realidade de muitas mulheres, principalmente as negras, é marcada por desafios que impactam diretamente sua saúde física e mental. Segundo dados do IBGE, 6 em cada 10 mulheres chefes de família são negras, e um estudo da ONG Think Olga diz que a ansiedade é um transtorno comum entre as brasileiras, afetando 60% delas.

A situação financeira precária e a difícil tarefa de conciliar diferentes áreas da vida, como trabalho, família e cuidado com o lar, são os principais fatores que contribuem para a insatisfação e o estresse entre as mulheres. Soma-se a isso a questão da baixa remuneração, que as torna ainda mais vulneráveis à insegurança alimentar, como aponta a pesquisa da Penssan.

Eu vivi essa realidade com minha mãe, que criou 4 filhos sozinha, construindo uma casa, saindo de casa cedo e retornando sempre muito tarde. Cansada, sem paciência após enfrentar transporte coletivo, engarrafamento, tirar etiquetas de biquínis novos da patroa que custavam três vezes mais que o seu salário, ter que comer sobras de comida em pratos separados e chegar em casa para cuidar de 4 crianças totalmente dependentes dela.

Minha mãe não participava de festas escolares, de reuniões, estava sempre cansada, atarefada e com uma tristeza no olhar.

Quando li o livro “Olhos D’Água” de Conceição Evaristo, em que ela relata quando tentou lembrar a cor dos olhos da mãe, lembrei-me dos olhos de tristeza da minha mãe, sempre pedindo socorro de forma sutil, como uma luz se apagando, se rendendo.

E por ter vivido tantas experiências desafiadoras na infância, desde que me tornei mãe, meu maior compromisso e desafio tem sido romper esse ciclo de dor, minimizar as reproduções que vivi e construir uma nova realidade para minhas filhas.

E por isso, sempre que posso, falo e escrevo para minha mãe agradecendo por tudo, porque sei que não foi fácil.

E sobre a mensagem que enviei no dia das mães, elas me respondeu dizendo: “Você sempre me ajudou em tudo, como filha, como mãe, cuidando de seus irmãos como se fosse mãe deles. Eu realmente só soube o que era ser mãe quando minha primeira neta nasceu. Ao ver os seus cuidados, ao ver os cuidados que você tinha com sua filha e os quais eu não tive com você, tive, mas não da forma que queria, mas era o que podia fazer…”

Ela fez muito!

Eu me sinto como uma ferramenta de transição, que reduz dores para minhas filhas e acalenta as dores da minha mãe, que neste momento está acalentando as dores da minha avó de 95 anos.

Assim, vamos nos reconstruindo aos poucos, nos amando, nos olhando e nos ouvindo, agora com tempo para o cuidado.

Espero de todo meu coração que possamos construir políticas públicas e organizacionais que garantam que todas as mães tenham tempo de qualidade, saúde física, mental e segurança financeira para cuidar de seus filhos e filhas, rompendo de vez com os ciclos de sofrimento  que a falta destes fatores fazem e causam na nossa sociedade.

*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP

Foto: Fabiana Conceição, grávida de sua 2a filha, Dandara/Por Luiz Fernando

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