Cotas Raciais: Um olhar interseccional para a justiça social
Cotas não são esmola! E mais do que uma reparação social, a política de cotas é uma oportunidade para que o povo negro, da periferia e de baixa renda permita ao mundo acadêmico convencional e eurocêntrico conhecer nossos saberes
Por Fabiana Conceição*
Eu sou filha de uma empregada doméstica e de um motorista, que tiveram acesso restrito à educação e, logo cedo, precisaram trabalhar para sobreviver. Durante toda a minha infância e adolescência, não conhecia ninguém próximo a mim que tivesse cursado uma faculdade.
Sabia que os empregadores dos meus pais eram formados e que seus filhos estavam sendo encaminhados para as faculdades estaduais e federais, no interior do estado ou em outros estados do Brasil, por terem sido aprovados em algum curso.
Essa era a minha única referência sobre o ensino superior. Esse assunto não fazia parte da minha experiência em família nem na comunidade, e o único sonho que eu tinha era de não precisar ser empregada doméstica.
A primeira vez que vi a possibilidade de cursar o ensino superior, nunca vou me esquecer! Em comemoração ao 20 de novembro, na minha escola, a então reitora da Universidade Estadual da Bahia, professora Ivete Sacramento, primeira reitora negra do nosso país, fez uma roda de conversa com os alunos.
Ela disse que nós podíamos! Que podíamos jogar futebol, tocar instrumentos, cantar, mas também podíamos ser muitas outras coisas, que podíamos ingressar no ensino superior e foi mencionando os cursos oferecidos pela universidade estadual, incentivando-nos a nos inscrever.
Essas palavras foram o meu despertar inicial, já que era uma mulher negra de pele escura, com tranças, dizendo que era possível.
Fui aprovada em uma faculdade através de um programa de incentivo, onde na época não foi exigida autodeclaração de raça, mas sim a comprovação de que estudei todo o ensino médio em escola pública.
Há 22 anos, as ações afirmativas ocorreram em nível estadual, e a professora Ivete foi precursora quando, em 2002, por meio de uma resolução interna da UNEB, determinou que 40% das vagas fossem destinadas à população afrodescendente nos cursos de graduação e pós-graduação. Em seguida, outras universidades estaduais aderiram.
Há quase 12 anos, tivemos a implementação de uma lei federal, a lei de cotas. Apesar de tantos anos, ainda ouvimos muitas pessoas sendo contra, mas quando questionadas sobre seu funcionamento, essas pessoas não sabem responder.
A primeira justificativa é a de que não é justo as vagas serem direcionadas para pessoas negras, pois na periferia há pessoas que não são negras, que vivem em situações sociais complexas e deviam ser beneficiadas.
Para ficarmos na mesma página quanto a isso, considero importante explicar o funcionamento da lei.
A Lei 12.711, conhecida como Lei de Cotas, determina que metade das vagas em universidades federais e instituições de ensino devem ser reservadas para estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas e que atingiram a pontuação necessária para ingressar na instituição escolhida.
Esses cinquenta por cento das vagas reservadas são novamente divididos: metade é destinada a alunos cujas famílias têm renda igual ou inferior a um salário-mínimo e meio por integrante da família, e a outra metade é destinada a pessoas com renda familiar acima desse valor.
Dentro dessa reserva de vagas para estudantes de escolas públicas, existem as cotas raciais, divididas entre negros (pretos e pardos), indígenas e para pessoas com deficiência, conforme a porcentagem da população no estado onde a instituição de ensino está localizada.
A reserva de cotas raciais é um olhar interseccional para as questões sociais e leva em consideração que raça vem antes de classe e que quanto mais a cor da pele escurece, menos oportunidades a pessoa tem de acesso aos direitos sociais.
A segunda justificativa utilizada pelas pessoas contrárias às cotas é que a inclusão por cotas reduz a qualidade da educação e que os conteúdos acabam sendo nivelados por baixo.
Diversas universidades estaduais e federais realizaram estudos ao longo dos anos de implementação da lei, e os resultados mostram que os alunos cotistas têm um desempenho semelhante ao dos alunos de escolas particulares.
Ao ingressarem na universidade, as notas dos cotistas são inicialmente inferiores em comparação com as dos estudantes vindos de escolas privadas. No entanto, após alguns semestres, os estudantes conseguem equiparar seus desempenhos aos dos colegas de escolas particulares.
Portanto, não se trata de rebaixar o nível, mas sim de oferecer oportunidades e equidade, dando suporte e condições para que esses alunos continuem seus estudos de forma digna e equitativa.
Durante os primeiros 300 anos do nosso país, as pessoas negras foram legalmente proibidas de estudar, criando uma dívida histórica que precisamos enfrentar.
Todas as ações afirmativas são essenciais para tentar reparar a exclusão racial de séculos. É inegável que nossa educação precisa elevar a qualidade do ensino, mas, enquanto isso não ocorre, precisamos de políticas públicas que garantam oportunidades de acesso à educação para a maior parte da população, que historicamente teve seu direito negado.
Eu sou fruto do poder da representatividade e da lei afirmativa, vi uma pessoa da minha cor, com vivências semelhantes às minhas, me encorajando a seguir em frente, a acreditar, e tive a oportunidade da ação afirmativa para realizar.
O acesso ao ensino superior representou uma transformação em minha vida, na vida de minha família e de minha comunidade.
Fui a primeira da minha família a frequentar o ensino superior e uma das primeiras de minha comunidade. Não esqueço de muitas vezes estar no ponto de ônibus às 6 da manhã, para atravessar a cidade e ir para a faculdade, vendo mães apontando para seus filhos e dizendo: “Olha ali, Fabiana está indo para a faculdade. Em breve, será você!”
A professora Ivete me inspirou com sua palestra. Ela correu para que eu, caminhando para o ponto de ônibus em direção à faculdade, mostrasse a muitas crianças da comunidade que alguém de seu bairro estava cursando uma faculdade, e que era possível sonhar.
Esse caminhar possibilita que o acesso ao ensino superior não seja visto como algo elitizado e distante, mas sim como um direito.
Como vocês já devem ter ouvido antes, cota não é esmola, é reparação social e, mais do que isso, como disse Gilberto Gil, a política de cotas é uma oportunidade para que o povo negro, da periferia e de baixa renda permita ao mundo acadêmico convencional e eurocêntrico conhecer nossos saberes.
Saberes ancestrais!
No ano passado, tive a oportunidade de reencontrar a professora Ivete em um evento e contei para ela o papel fundamental que ela teve em minha vida, agradeci por sua coragem, responsabilidade e papel fundamental na transformação social que ela provocou ao ser a grande protagonista da lei de cotas em nosso país.
*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP
Fabiana Conceição
Colunista VSP
Baiana, mulher negra, mãe de Janaína e Dandara, Fabiana é pedagoga com especialização em psicologia organizacional e diversidade e inclusão e tem pós em Gestão de Projetos. Pesquisadora e palestrante sobre o tema Racismo e Preconceito, é educadora antirracista. É ainda especialista em desenvolvimento de talentos e diversidade, equidade e inclusão na Talento Incluir.
Foto: Goutinho De Flávio GF/Pexels
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