Mas ela é quase da família!
Trabalho doméstico no Brasil, quando o “quase da família” justifica crimes, desrespeito e invisibilidade
Por Fabiana Conceição*
Minha mãe e todas as minhas tias foram empregadas domésticas, e algumas ainda o são.
Desde o dia em que nasci, vivi na pele a experiência de ser filha de uma empregada e, por ter sido uma criança muito observadora, sempre enxerguei além do superficial.
Lembro de uma vez em que ainda era pequena, era final da tarde e, após sair da escola, fui para a casa em que minha mãe trabalhava esperá-la para irmos para casa.
Minha tia, ainda adolescente, também trabalhava como empregada doméstica em uma casa próxima e chegou chorando, pois o patrão dela a havia agredido. Minha mãe, revoltada, levou minha tia até a delegacia e o delegado orientou a deixar para lá, dizendo que não daria em nada. Minha tia voltou para a casa dos patrões e, como se dizia naquela época, ficou “apanhada”.
Poderia contar milhões de histórias absurdas que presenciei e ouvi de minha mãe e minhas tias. Claro, não posso ser injusta, tive experiências boas e que, por muito tempo, até vi como extraordinárias, porque o básico que foi feito, a dignidade que foi possibilitada, era tão incomum que a patroa que fazia o mínimo era vista como uma benfeitora.
O trabalho doméstico no Brasil tem raízes na escravidão, que não se configurou apenas com grandes escravocratas, mas também com pessoas de poucas posses que compravam escravos como forma de investimento.
Após a abolição, sem nenhum apoio governamental para que as pessoas anteriormente escravizadas se estruturassem e com histórico de proibição de acesso à educação, direito à terra, a posses e à livre circulação nas ruas, restou para muitas pessoas seguir nas casas de seus antigos donos, trocando a força de trabalho por comida.
Seguindo essa construção, vamos pensar nas pessoas que mesmo com poucos recursos tinham escravos e, por muito tempo, não precisaram pagar pelos serviços domésticos. Alinhando a isso, o racismo estrutural intencionalmente colocou as pessoas negras em desvantagem, resultando no estabelecimento do trabalho doméstico como um trabalho feito por pessoas negras e visto como mão de obra barata e desqualificada.
Segundo o DIEESE, são quase 6 milhões de pessoas nessa ocupação, sendo 93,5% mulheres e quase 64% negras. As empregadas domésticas têm uma média salarial 61% menor do que a de outras pessoas trabalhadoras, e apenas 25,6% têm carteira assinada.
Como diz a historiadora e rapper Preta Rara, a senzala moderna é o quartinho da empregada.
Os números acima são alarmantes, mas se fizermos uma análise qualitativa dos dados, eles conseguem ser piores porque trazem além dos números, as vivências da maioria das empregadas domésticas, que são invisibilizadas, humilhadas, desumanizadas e até mesmo escravizadas.
Sim, tem se tornado comum ver nos noticiários diversos casos de trabalho configurado como análogo à escravidão, onde pessoas trabalharam por anos para duas ou mais gerações de famílias sem receber salário e outros direitos trabalhistas, vivendo em locais insalubres, sem acesso à saúde e à educação.
E quando os casos são descobertos, a pessoa criminosa usa sempre a mesma justificativa: “ela é quase da família!”
O que essas pessoas apresentam como prova de que a empregada doméstica é considerada quase como um membro da família ocorre através de gestos como doar roupas e sapatos que não são mais usados, compartilhar a mesma comida (muitas empregadoras não oferecem comida ou até mesmo água), dizer que a trata como uma filha, ou quando custeiam um curso para o filho da empregada.
Ainda hoje as pessoas se sentem confortáveis em dizer que ganharam a empregada de presente da mãe ou da sogra, como se fosse um objeto.
É comum empregadoras pagarem um valor maior em um almoço com as amigas, ou em uma blusa, do que pagam de salário para suas empregadas, que lavam, passam, cozinham e cuidam dos filhos delas.
Sabe quando as mulheres negras questionam o empoderamento feminino?
É isso, esse empoderamento é para quê e para quem?
E que empoderamento é esse no qual a pessoa não lava as próprias roupas íntimas?
Que empoderamento é esse que a pessoa não consegue ir sozinha para um passeio com os próprios filhos, precisando de uma babá uniformizada para empurrar um carrinho?
Para mim, o caso de Miguel emoldura o do trabalho doméstico em nosso país.
A mãe Mirtes, que, sem ter com quem deixar o filho, o levou para o trabalho e, enquanto passeava com os cachorros da patroa, deixava seu filho sob os cuidados dela.
A cena que que pode ser emoldurada é que Mirtes volta do passeio com os cachorros e encontra seu filho morto no chão.
Mirtes fica desesperada, grita, sofre a morte de seu único filho, enquanto suas mãos seguram o tempo todo a corda dos cachorros que levou para passear.
Mirtes, em meio ao caos e à dor, segurou os cachorros da patroa, e, em contrapartida, a patroa abriu o elevador que levou o filho de Mirtes para a morte.
*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP
Fabiana Conceição
Colunista VSP
Baiana, mulher negra, mãe de Janaína e Dandara, Fabiana é pedagoga com especialização em psicologia organizacional e diversidade e inclusão e tem pós em Gestão de Projetos. Pesquisadora e palestrante sobre o tema Racismo e Preconceito, é educadora antirracista. É ainda especialista em desenvolvimento de talentos e diversidade, equidade e inclusão na Talento Incluir.
Foto: Reprodução/Internet
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