Mãe de adolescente trans em Goiânia luta contra o preconceito
Costureira que há três anos soube que um dos quatro filhos é transgênero relata a dificuldade para mantê-la em escola da rede estadual, onde nome social e uso do banheiro feminino foram negados
Por Malu Longo
O depoimento de uma mãe de uma adolescente transgênero revela o quanto é desafiador para a família manter em instituições de ensino um filho que não se identifica com o sexo que lhe foi atribuído ao nascer. Aos 39 anos, a costureira Luciane Maravilha de Lima, divorciada, tem atravessado dias turbulentos para manter a filha P., 14, na escola. “Eu só quero que nada atrapalhe os estudos dela. Estou ciente de que vamos ter de enfrentar preconceito para o resto da vida, mas não vou ficar de cabeça baixa de braços cruzados vendo as pessoas a humilharem.“
Há cerca de três anos, P., que nasceu menino, comunicou à mãe que não se sentia bem com seu gênero e muito menos com o nome que recebeu ao nascer. Mãe de quatro filhos, até então todos do gênero masculino, Luciane acolheu P. Para sua surpresa, o pai dela que até então parecia preconceituoso agiu naturalmente, assim como os irmãos. “Ela tinha medo da nossa reação, era calada, presa nela mesma, só se abria com os amigos.” Entretanto os problemas ficaram latentes na escola pública estadual onde P. estuda.
Na unidade de ensino, P. enfrentou a resistência da diretora que insistia em chamá-la pelo nome de registro. Ela também foi proibida de usar o banheiro feminino. Luciane e o pai da adolescente tinham entregue na escola um documento em que explicavam a condição da menina e o nome social que ela escolheu. “Ela nunca foi agressiva dentro de casa, mas mudou dentro da escola em razão das provocações. Ficavam repetindo o nome que ela não gostava“, explica a mãe. Os embates com a direção foram tamanhos que Luciane decidiu tirar a filha da escola.
“Muitos professores a acolheram, mas a diretora não a aceitava sempre com o argumento que ela ‘entende de leis’. Ela me disse que o caso de P. era de expulsão, por isso decidi tirar ela da escola.” Luciane esteve na Secretaria Estadual de Educação (Seduc) e conseguiu vaga em outra unidade, a 4 km de casa. “Ela tinha de caminhar até lá porque não tenho condições de pagar transporte e ela não se adaptou porque os amigos ficaram na outra escola. Aí, me aconselharam a retornar para a mesma unidade“, relata a mãe.
Depois de perder um ano da vida escolar, P. foi novamente matriculada na instituição perto de casa. “Eu fiquei com trauma. Como continuaram agindo com ela da mesma maneira, estive lá e enfrentei um monte de gente me oprimindo, me acusando, dizendo que dão apoio a minha filha. Como assim? Sou a única que faço isso. Ela estando bem eu também vou ficar para correr atrás do sustento dela.” Sem saber como agir, Luciane procurou a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros de Goiás (Astral-GO), presidida pela psicóloga Beth Fernandes, mulher trans de 55 anos. Ali recebeu orientação para buscar ajuda na Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO).
– Resolução do Conselho Nacional de Educação define diretrizes –
Na semana passada o Núcleo Especializado de Direitos Humanos da DPE-GO encaminhou ofício à diretora do Colégio CEPI Professora Lousinha Carvalho, no Setor Crimeia Oeste, onde P. está matriculada, pedindo esclarecimentos sobre as “situações embaraçosas e humilhantes no cotidiano escolar, o que consequentemente coloca em risco seu desempenho acadêmico e a sua saúde”. O mesmo oficio chegou à Seduc.
No documento, o defensor público Tairo Batista Esperança cita a Resolução n. 1, de 19 de janeiro de 2018, do Conselho Nacional de Educação, na qual estão definidas diretrizes e práticas que devem ser adotadas pelas escolas para combater discriminação em função de orientação e identidade de gênero, não somente de estudantes, mas também de gestores funcionários e seus familiares. Pela Resolução, o nome social pode ser usado. No caso de menores, como P., os representantes legais devem referendar.
– Processo educativo –
Gerente de Programas e Projetos Intersetoriais da Seduc, Marcos Pedro da Silva disse que sua equipe irá para dentro da escola para executar um processo educativo, como tem feito em outras situações similares. “Independentemente do ofício da DPE-GO, a Seduc tem compromisso com a formação humana. As pessoas podem ter suas convicções em casa ou em qualquer outro lugar, mas não no ambiente profissional. Às vezes é um pequeno gatilho que tem um peso enorme em razão do sofrimento do aluno“.
Marcos Pedro explica que o caso especifico de P. já foi debatido por sua equipe. “Vamos para dentro da escola ouvir todos os envolvidos, fazer um processo educativo, com escuta ativa e olhar atento, para que isso não volte a acontecer. Muitas vezes as pessoas querem a punição de quem faz o ato, mas o nosso projeto é de educar para essa convivência, para que a diversidade seja respeitada, para que todos tenham direito de estar na escola incondicionalmente. Nosso processo é baseado na mediação.“
No ano passado, três escolas, em Goiânia e Aparecida de Goiânia receberam a equipe da Seduc e segundo Marcos Pedro, o resultado foi um sucesso. “Nossa metodologia é baseada na voluntariedade dos envolvidos, no sigilo e na imparcialidade para que o caso seja resolvido sem nenhum tipo de contaminação“. Ele orienta as famílias para que casos como o de P. sejam denunciados à Ouvidoria da Seduc. “É importante que isso ocorra para que possamos atuar dentro da escola.“
Publicado originalmente no site O Popular e editado na redação VSP
Foto: Luciane com a filha: “Vamos enfrentar preconceito para o resto da vida, mas não vou ficar de braços cruzados”/ Por Wesley Costa
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