Pessoas da terceira idade da capital do país enfrentam desafios diários
Quase 12% da população no Distrito Federal, pessoas com mais de 60 anos costumam ser alvo de preconceito. Especialistas comentam que a mudança cultural e de valores é essencial para vencer esse tipo de discriminação etária
Por Arthur de Souza
“Não estou aqui para julgar a nova geração, não quero ter esse confronto. Quero apenas analisar o que acontece, saber o porquê das pessoas estarem com essa falta de consideração em relação àqueles que estão no mercado há mais tempo“. É assim que a empresária aposentada Flávia Pires, 67 anos, se sente em relação ao preconceito que sofre por conta de sua idade. O motivo da discriminação? Ela é a criadora de um aplicativo chamado Tech Care: Dia-a-Dia, idealizado para cuidar de sua mãe, que tem Parkinson e Alzheimer e mora em Recife (PE).
Professora associada da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do grupo de trabalho Envelhecimento Saudável e Participativo, da Diretoria de Atenção à Saúde da Comunidade Universitária (Dasu/UnB), Leides Moura explica que a situação vivida por Flávia se encaixa no conceito de idadismo, etarismo ou ageísmo. Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) mais recente, realizada pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF), mais de 356 mil idosos moram na capital do país, número que corresponde a 11,84% da população do Distrito Federal.
A especialista comenta que existem duas formas de ocorrer a discriminação: prescritivamente e descritivamente. “Na prescrição, o indivíduo define o que os idosos podem e não podem fazer, sem considerar suas histórias de vida, como se a idade fosse um delimitador“, comenta. “Enquanto isso, na segunda, a pessoa descreve, generalizadamente, as pessoas idosas como se o processo de envelhecimento fosse completamente homogêneo, o que não é verdade. As pessoas idosas têm mostrado suas capacidades“, destaca.
É o caso do tipo de preconceito sofrido por Flávia. Mesmo sendo a criadora do aplicativo, ela conta que o fato do mundo tecnológico ser dominado pelos mais jovens faz com que ela seja discriminada no meio. “Apresentei meu projeto em alguns locais e, de cara, tanto avaliadores como participantes tiveram um olhar preconceituoso sobre mim, sem acreditar que sou a responsável pela criação de um aplicativo“, lembra. “Também já passei por uma situação, durante um evento tecnológico, onde as pessoas — em geral, mais jovens — sequer perguntavam meu currículo, simplesmente por conta da minha idade. Me senti invisível“, desabafa a moradora do Park Way.
Para a empresária aposentada, atualmente, alguns jovens têm a tendência de se sentirem completos. “Talvez por conta de ter esse acesso rápido ao conhecimento, pelos meios digitais“, observa. “Antes, a questão da experiência era mais valorizada. Todo mundo prestava um pouco mais de atenção nas pessoas que eram mais velhas — e que tinham mais experiência de vida. Era a nossa forma de compartilhar conhecimento. As pessoas maduras também querem mudar o mundo do mesmo jeito que os jovens. Essa bandeira também é nossa“, lembra.
– Falta de preparo –
Quem também sofre com o preconceito diário é o professor Vicente Faleiros, 81. O morador da Asa Norte considera que o idadismo é uma questão bastante complexa. “É um problema estrutural, assim como o racismo, e que está presente em todas as instituições: familiares, sociais, empresariais, etc.”, frisa. “Até mesmo o mercado de trabalho faz isso. As instituições de ensino costumam priorizar a concessão de novas bolsas de pesquisas, tanto para mestrado quanto para doutorado, para quem tem até 40 anos. Em uma reunião de trabalho, o grupo de pessoas jovens costuma interagir apenas entre eles, me excluindo da conversa. No trânsito, também é bastante frequente eu passar por algumas situações, onde sou ‘xingado’ de velho“, reclama.
Líder do Fórum de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa no Distrito Federal, o educador lembra de outras situações em que sofreu descaso. “Na época que lecionava em uma faculdade de Taguatinga, usava o metrô algumas vezes, por conta do trânsito. Era difícil conseguir o assento preferencial. Se tinha algum jovem sentado, ele não fazia questão de levantar“, pontua. “Até mesmo nas redes sociais sou alvo. Costumo receber mensagens com ‘piadas’, que tratam o idadismo como uma forma de humor. Isso é errado“, nota.
O bancário aposentado Doralvino Sena, 59, também sofre com falta de respeito, por conta de sua idade. Mesmo ainda não sendo considerado oficialmente um idoso, o morador do Lago Norte conta que tem um filho de 4 anos (Gustavo Sena) e, desde a gravidez de sua esposa — Olga Huhn, 42 —, tem enfrentado questionamentos. “Costumam me perguntar: ‘onde já se viu filho nessa idade?’. Também me chamam por alguns apelidos, como pai-avô e avohai“, comenta.
Doralvino revela que também costuma ouvir algumas “piadinhas” sobre o seu relacionamento. “As pessoas dizem que minha filha é muito bonita, se referindo a esposa“, reclama. Para ele, o sentimento com tudo o que vive é de surpresa. “Vivemos modelos impostos de comportamentos, estéticos, padrões, rótulos e pré conceitos. As pessoas, na sua maioria, não estão preparadas para a diferença ou mudanças“, acredita. “É muito clichê e rótulo. As pessoas não entendem que o amor ultrapassa barreiras. Isso me decepciona“, lamenta.
– Mudança cultural –
Segundo a especialista do grupo de trabalho da UnB, envelhecer no DF é uma novidade. “As pessoas idosas passaram a viver mais e, por isso, temos uma série de questões para ajustar. Uma cidade boa para a pessoa idosa é uma cidade boa para todas as idades“, aponta Leides Moura. “É preciso fazer com que ela tenha caminhabilidade e seja adequada para os seus moradores. E aí, é preconceito achar que é só por causa de seus idosos, isso seria um exemplo do idadismo.“
Leides destaca que, para que a mudança aconteça, é preciso ajustar as narrativas, expectativas, os serviços, além de mudar a forma de abordar a pessoa idosa. “A mudança cultural e de valores é essencial para que a gente alcance essa transformação na sociedade, e para que a sociedade se torne ‘envelhecente’ e celebrativa da diversidade geracional“, observa. “Temos uma variedade de gerações convivendo e é importante esse diálogo entre elas. O ageísmo pode dificultar e se tornar uma barreira que impede esse tipo de relação“, acrescenta.
Ela também coloca a educação como fator fundamental para a quebra do preconceito. “O artigo 22 do Estatuto da Pessoa Idosa fala da questão de se abordar envelhecimento em todas as etapas da formação“, frisa. “É importante a gente poder, de fato, articular essa forma de pensar diferente sobre envelhecer, inserir nesse debate os direitos da pessoa idosa e sobre o envelhecimento ao longo da vida, conversando sobre isso com crianças, adolescentes, jovens, adultos e com os próprios idosos“, aconselha. “A educação tem muito a contribuir e a gente precisa de políticas específicas, além de normativas nas instituições e no mundo do trabalho, que deixem claro que não é tolerável a violência do ageísmo e do idadismo“, complementa.
– Conceito –
“O idadismo é um termo cunhado nos últimos 50 anos. Se a gente pudesse definir, seria uma forma de classificar as pessoas a partir da idade. São narrativas marcadas pelo grau do sistema de opressão e de preconceitos, na forma como a gente pensa, sente e age, marcado por todo um olhar cultural que define o envelhecimento como algo que não é bem-vindo e termina influenciando a nossa forma de sentir. A gente discrimina a pessoa a partir da idade, em geral, homogeneizando ou generalizando, as suas capacidades“.
Publicada originalmente no Correio Braziliense
Foto: Doralvino Sena, 59 anos, a esposa Olga Huhn, 42, e o filho Gustavo, de 4/Arquivo Pessoal
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