Tratamento sem preconceito
Combater o estigma que cerca a monkeypox é fundamental para evitar os erros cometidos no passado, com o HIV/Aids
Por David Uip
O primeiro caso autóctone de Aids no Brasil foi confirmado no início de 1982. O paciente, do sexo masculino, havia emagrecido 20 kg em dois anos. Não sobreviveu. Naquele momento não havia exame específico para a doença, que foi diagnosticada por meio dos dados clínicos, epidemiológicos e de achados laboratoriais.
No final de 1995, um jovem de 18 anos recebeu o diagnóstico de Aids. O único dado epidemiológico do caso se referia a uma transfusão de sangue, ocorrida dez anos antes. Hoje, 37 anos após a infecção primária pelo HIV, o paciente é economista, pós-graduado e vive do seu trabalho.
São duas histórias reais, que diferem em seus desfechos pela oportunidade de utilizar medicamentos antirretrovirais, específicos para o tratamento da Aids.
Quando da descrição científica do primeiro caso, os autores citaram os “grupos de risco”: homossexuais, dependentes de drogas ilícitas, politransfundidos e haitianos. Com o passar do tempo, a disseminação da Aids demonstrou que essa epidemia não considera cor, idade, comportamento sexual ou qualquer outro critério social, cultural e econômico, necessitando ser enfrentada com base no respeito ao direito e à dignidade da pessoa humana.
Quatro décadas depois, vivemos um preocupante surto de monkeypox (varíola símia), já considerado emergência global em saúde pública pela Organização Mundial da Saúde. Combater o estigma e o preconceito que cercam a doença é fundamental para evitar os erros cometidos no passado, no início da epidemia do HIV/Aids.
É dever do Estado prevenir e tratar todas as doenças, mas é inaceitável que se faça diferença entre as pessoas por conta delas. No caso da Aids, sem vacina disponível até hoje, o tratamento universal garantido pelo SUS (Sistema Único de Saúde) a todos os doentes desde meados da década de 1990 se demonstrou um grande acerto, após um início desastroso na condução do enfrentamento à epidemia, que foi a estigmatização dos pacientes. O chamado “coquetel”, como forma mais avançada de tratamento para as pessoas com HIV/Aids, culminou com a expressiva melhora da qualidade de vida e aumento da sobrevida.
Quando as pessoas são adequadamente tratadas, diminui a quantidade de vírus no sangue, nas secreções e excreções e, consequentemente, zera a contaminação de outras, inclusive recém-nascidos, filhos de mães soropositivas.
É nessa linha que devemos pensar as políticas para enfrentar o surto de monkeypox, garantindo o acesso dos doentes à adequada assistência, sem preconceitos, e orientando a população em relação aos sintomas e medidas de prevenção. Até porque não há quantitativo de vacina suficiente para imunizar grandes contingentes populacionais neste momento.
Em relação à Aids, a infecção pelo vírus HIV se dá predominantemente por relação sexual desprotegida e pelo sangue contaminado. A monkeypox também pode ser transmitida pelo sexo, mas não somente. Contatos íntimos como abraços em pessoas com lesões ou mesmo compartilhamento de objetos como roupas de cama e toalhas podem ocasionar a transmissão.
Ainda sabemos pouco sobre como o vírus vai se comportar daqui em diante, mas com base em experiências anteriores e no acúmulo do conhecimento científico ao longo dos últimos 40 anos, é inadmissível errar na condução de seu enfrentamento. O preconceito não leva a lugar nenhum.
Em São Paulo, lançamos uma rede de combate à monkeypox, integrando 93 hospitais de retaguarda, protocolos de diagnóstico e assistência, rede credenciada de laboratórios para testagem e vigilância genômica e capacitação dos profissionais de saúde.
Assim como o HIV, toda a população está suscetível à infecção pelo Monkeypox Vírus. As políticas para conter o avanço da doença devem se nortear exclusivamente à luz da ciência e dos fatos, sem estigmatizar, jamais, os pacientes.
Publicado originalmente no jornal O Globo
Foto: Micrografia eletrônica de transmissão colorida de partículas do vírus da varíola dos macacos (amarelo) encontradas dentro de uma célula infectada (rosa), cultivadas em laboratório/Por NIAID
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