A importância do fracasso para que possamos existir

A importância do fracasso para que possamos existir
Compartilhe este artigo

Habitar um corpo que falhou diante do padrão me permite celebrar tudo que sou

Por Jéssica Balbino

Eu sou fracassada. Isso mesmo. Um fracasso. No melhor estilo da expressão que eu acho tão engraçada: “fracassei miseravelmente”. E quero falar sobre como essa palavra que tanto nos aprisiona pode ser também um trampolim para a liberdade.

Poucas coisas são como o fracasso na tentativa de nos humanizar. O fracasso nos torna iguais. Todo mundo, mais dia, menos dia, fracassa. E o bonito da vida, talvez, seja justamente isso.

Falhar, se perceber como todas as outras pessoas, errar. Não dar conta, não cumprir o que prometeu, não entregar o que combinou. Sumir, desaparecer, insistir, aparecer demais. Simplesmente fracassar diante do que é inalcançável: uma promessa.

Fracassar é inerente ao processo da existência e, sem o esforço imenso para não fazê-lo, podemos fazer qualquer coisa, dentre elas, ser o que queremos ser.

Eu fracassei enquanto corpo no mundo. Desobedeci à norma, não segui o que esperam de mim: dieta, tristeza e um corpo encaixotado no padrão. Me faltou coragem para ser normativa. Me sobrou desejo de ser dissidente. A dissidência aqui, inclusive, pode ser lida como um fracasso.

Fracassei na existência como humana. Me bestializei ao ‘escolher’ viver em um corpo marginalizado. E isso me ferra todos os dias. Mas me liberta de não querer estar no padrão, de não precisar me esforçar, cotidianamente, por isso. Ser uma besta, talvez, seja o lugar de máximo conforto para alguém que fica confortável com o fracasso.

Já não esperam nada de mim. Que eu emagreça, que eu tome shakes, que eu compre suplementos, que eu faça dietas restritivas, que eu procure nutricionistas e saia de lá contando calorias e medindo a cintura com a fita métrica. A mim, desejam a morte – e de forma sofrida, sem acesso à saúde. E, apesar de todos os problemas que isso possa causar, o fracasso é o que viabiliza a minha existência.

A leitura social de um corpo falho me permite, imediatamente, ser tudo que eu quiser. E esse tudo inclui ser quem eu quiser, ainda que desumanizada. Inclui não me punir por ter o corpo que tenho, mas celebrá-lo. Ser um fracasso me permite não precisar lutar por um lugar qualquer, mas me esparramar onde der – e eu couber e, ali, ser o que me for possível.

E que bonito que é ser o que der pra ser, sem que precise existir algum esforço em convencer outras pessoas, a sociedade, você que me lê, o mundo, de que eu valho alguma/qualquer coisa. Ser um corpo cravado no fracasso é ser livre. É me ver distante de qualquer tipo de pódio e próxima da derrota, lambendo as feridas, sem, contudo, ter que lidar com a angústia do inalcançável e, tampouco, com o desespero pela validação.

Viver como uma fracassada, me permite, inclusive, escapar do olhar do outro. Se eu fracassar, não existo. Sendo um fantasma, imensa e invisível, não preciso me preocupar com as formas de morrer: eu não existo.

E, se meu nome não estiver inscrito em lugar algum, tal qual meu corpo, tudo é permitido, inclusive viver. Viver, desde lugar, pode ser estranho, mas remonta possibilidades tantas. A de descanso para um corpo e uma existência exaustas, a da vulnerabilidade – e quer beleza maior do que esta: poder estar vulnerável?

Sendo um corpo fracassado, posso ser um corpo que grita e não preciso fazer o silêncio, tão prezado pela normatividade. Sendo um fracasso que habita o lado de fora, de cá, das margens, posso dizer de tudo que me dói. Se vou ser ouvida, é outra questão. Mas, vou dizer.

E você, que transforma tudo isso num inferno, vai ter a oportunidade de me ouvir – ou ler. E, a mim, pouco importa. Não vou entregar mais do que meu fracasso.

Ser uma mulher fracassada – bem como uma feminista fracassada, como já escrevi aqui – me permite falar alto, sentar com as pernas abertas e fazer o que eu quero, inclusive arder em chamas, com meu corpo abjeto.

Outros Fracassos

Logo que chegou à casa do BBB 22, a Linn da Quebrada se apresentou como travesti e quebrou a internet ao fazer um discurso sobre o fracasso. “Eu fracassei. Sou o fracasso de tudo aquilo que esperavam que eu fosse, não sou homem, não sou mulher, sou travesti (…)”.

Discurso esse que colide com o trabalho de Luan Okun sobre o fracasso. Ou com o texto de Paul Preciado, sobre “A coragem de ser você mesmo”.

Meu desejo é que possamos ser fracos. Que possamos falhar, fracassar. E, nos reconhecendo, assim, existências. E um dia, isso será tudo.

Publicado originalmente no jornal Estado de Minas
Foto: Lu Alves/Divulgação

Siga o Viver Sem Preconceitos nas Redes Sociais

Curta, comente, compartilhe…

Vamos fazer do mundo um lugar melhor para se viver,
um lugar com menos preconceitos!

O Portal Viver Sem Preconceitos autoriza a reprodução de seus conteúdos -total ou parcial- desde que citada a fonte e da notificação por escrito.
Para o uso de matérias e conteúdos de terceiros publicados aqui, deve-se observar as regras propostas por eles.

Redação

Redação

Aqui são publicados todos os textos autorais produzidos pelos colaboradores e também os textos produzidos por qualquer redator, a partir de pautas ou de edição de textos retirados na Internet e que, não necessariamente, têm de dar créditos a terceiros.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *