Proibida de se vacinar pelo marido, mulher morre de covid-19

Proibida de se vacinar pelo marido, mulher morre de covid-19
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Combinação de machismo e falsas informações tem custado a vida de mulheres.

Matéria publicada originalmente por Yasmin Santos, Intercept Brasil
Editada para o Viver Sem Preconceitos por Cleber Siqueira

Quase dois anos depois do início da pandemia, a médica intensivista Nathália Fraporti ainda sente medo. Quando a população brasileira passou a ser vacinada Brasil, no início de 2021, havia a esperança de que esse pesadelo fosse chegar ao fim. Mas sua rotina como médica nas UTIs dos quatro hospitais de São Paulo em que cuidou de casos de covid-19 mostrou o quanto impotente um profissional pode ser.

Sem remédios para combater a doença, o jeito era aliviar os sintomas e esperar. O paciente tinha que combater o vírus por conta própria. Muitos morreram assim.

Atualmente, o aumento da vacinação no país e a, consequente, diminuição no número de mortos indicam que vacinas salvam vidas. Até o dia 4 de janeiro de 2022, mais de 143,7 milhões de pessoas (67% da população) já haviam completado esquema vacinal e mais de 26 milhões haviam tomado a dose de reforço.

Com a desaceleração da doença, a médica acreditou que teria uma rotina um pouco mais tranquila nos hospitais – até que começou a atender casos graves de mulheres infectadas pelo coronavírus que haviam sido proibidas de se vacinar por seus maridos. Nathália detalhou ao Intercept sua angustiante rotina no hospital, resultado de uma mistura de machismo com desinformação. Seu relato foi produzido para fins de clareza e, para não expor as pacientes, o periódico usou nomes fictícios.

Renata, 65 anos

A Renata tinha 65 anos, se não me engano. Foi a paciente mais grave que tivemos no hospital. Foi internada no início de outubro, junto com o marido, Fernando. Ele se recuperou, mas ela ficou. Como os casos de covid-19 diminuíram bastante, teve um momento em que ela era a única paciente com a doença na UTI. Eu ligava quase todos os dias para a família e conversava com as irmãs dela. Lembro que, quando ela chegou no hospital, perguntei por que não havia se vacinado. Em outubro, a Renata já estaria perto de tomar até a terceira dose da vacina. Ela disse que queria, mas o marido a proibiu. Ficou na vontade.

Quando algum paciente está com síndrome aguda respiratória grave e passa muito tempo deitado, como no caso da Renata, ele fica com dificuldade de mandar oxigênio do pulmão para o sangue. Nesse caso, podemos pronar o paciente, que é uma manobra em que o viramos de barriga para baixo. É como se a gente tirasse esse peso que está por cima. Assim, o pulmão consegue se oxigenar com mais facilidade.

Precisamos de pelo menos seis profissionais para realizar a manobra sem tirar o tubo respiratório do lugar, nem provocar qualquer alteração nos acessos do paciente. A Renata teve bastante benefício todas as vezes em que fizemos a manobra. Apesar da idade avançada, foram 13 pronas. Isso é bastante coisa, foi uma das pacientes que a gente mais pronou no hospital. Até o momento em que ela parou de responder ao procedimento. Isso porque, quando o tubo de respiração fica muito tempo na via aérea, ele acaba grudando na mucosa. Fizemos uma traqueostomia, uma cirurgia em que fazemos um corte na garganta do paciente e inserimos um pequeno tubo na traqueia pra facilitar a respiração. Só que a Renata já tinha passado mais de 20 dias intubada. Chegou num ponto em que ela não tinha mais covid, estávamos tratando apenas as sequelas da doença, como a fibrose pulmonar.

Depois de um mês e meio internada, ela veio a óbito. Quis entender o que tinha levado o Fernando a fazer o que fez, a não se vacinar, nem permitir que a esposa o fizesse. Ele me contou que nunca havia tomado uma vacina na vida. Com todas essas fake news circulando, ele passou a acreditar que a vacina fazia mal para a saúde. Ele chegou a falar para mim que o vírus tinha sido manipulado, criado em laboratório. Com um ar de guerra biológica, sabe? Ele acreditava nisso. E achava que a vacina fazia parte da mesma manipulação. Pensava estar protegendo a si e à esposa.

Nas ligações para as irmãs dela, quando ainda estava internada, eu  soube que Fernando estava muito arrependido. Falava o tempo todo que ia perder a esposa, porque não a deixou se vacinar. Ele se imunizou ao sair do hospital, mas se sente culpado por ter privado a esposa dessa oportunidade.

Júlia e Rose

Acompanhei outras duas pacientes, Júlia e Rose, que também não se vacinaram por conta dos maridos. A Júlia tinha cerca de 35 anos, e a Rose, uns 40 e poucos. Os companheiros eram defensores ferrenhos do governo Bolsonaro e acreditavam em tudo que o presidente falava. Elas acabaram tendo a mesma ideia, porque os maridos são as pessoas com que elas mais conversam, com quem elas formam opinião. Nesses dois casos, eles não permitiram que elas se vacinassem, mas elas também foram influenciadas, de certa forma.

Júlia e Rose ficaram internadas na UTI, mas não precisaram ser intubadas. Se recuperaram e logo em seguida tomaram a vacina. Conversei bastante com elas. As duas estavam arrependidas. Os maridos também.

Machismo, arrependimento e medo

Quando a gente está no hospital, observamos um momento de fragilidade muito grande da família. Tem que ter muita sensibilidade para lidar com isso. Não é momento de julgar, de apontar o que essas pessoas decidiram, mas eles mesmos trazem isso para a gente: “olha, eu me arrependo, porque eu estou vendo o risco que eu estou correndo, o problema que eu criei e poderia ter evitado se me vacinasse”. Muito triste que as pessoas só se deem conta nessas horas. Justamente no momento em que a morte pode ser inevitável.

Essas imposições dos maridos sobre as mulheres também apareciam muito quando eu fazia residência ginecológica. Durante o pré-natal, algumas pacientes descobriam que estavam infectadas com ISTs. Como médicos, nós orientamos a paciente a contar para o marido, porque ele também precisa fazer os exames e, se necessário, o tratamento. No caso da sífilis, por exemplo, os dois precisam ser tratados, porque provavelmente eles vão continuar tendo relações sexuais e, sem o tratamento combinado, a paciente vai se curar e, logo em seguida, se reinfectar.

Duas coisas aconteciam muito: a maioria ficava com vergonha de contar para o marido, muitas vezes porque não sabia como pegou a doença, se foi antes ou durante o relacionamento, e ficava com medo de criar um atrito com o companheiro. Mas havia casos em que elas chegavam ao consultório já sabendo do diagnóstico. O marido já tinha alguma IST, fazia tratamento, ela sabia disso, mas ele dizia que ela não precisava se tratar. “Isso não deve ser nada, e vida que segue!” Isso é muito grave. Eles são, ou deveriam ser, informados de que não é assim.

Eu já acompanhei casos de bebês que vieram a óbito por conta disso. Uma paciente minha, a Silvana, era casada com um marido que tinha sífilis. Durante o pré-natal, os exames dela deram negativo para a doença, mas no ultrassom dava para ver que o feto tinha algumas alterações no corpo. Quando dosamos o VDRL, um exame diagnóstico pra sífilis, as taxas estavam muito altas. A sífilis tem isso. Quando as taxas estão muito altas, pode dar um falso negativo. Ela nos contou que sabia que o marido tinha a doença, mas que ele havia se tratado e achava que nada ia acontecer com ela. O bebê da Silvana mal abriu os olhos e morreu.

Isso tudo é muito triste e revoltante. As mulheres precisam se convencer de que têm um poder pessoal de fazer o que elas querem, mesmo se elas não estiverem preparadas para sair de um relacionamento abusivo – porque eu entendo que uma pessoa que te impede de cuidar da sua própria saúde da forma que você acha melhor está te tratando de forma abusiva. Se essas mulheres ainda não estão prontas ou não têm como sair desse relacionamento, e desde que elas não estejam em cárcere privado, a gente tem milhares de formas de cuidar da saúde.

Leia a matéria original clicando aqui.

Ilustração: The Intercept Brasil/Getty Images

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Redação

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