A coragem de ser a primeira

A coragem de ser a primeira
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A experiência de ser a primeira geração com desafios invisíveis, conquistas importantes e a construção de um novo legado

Por Fabiana Conceição*

Em um típico sábado à noite, minhas filhas resolveram ir para a cozinha preparar um lanche. A mais velha, ao ver a irmã usando um equipamento quente, alertou sobre o perigo:

Danda, se você se queimar, vai ficar machucada porque mamãe não sabe dirigir. O carro está aí, mas ela não sabe! E conseguir um carro nesse horário vai ser muito difícil.”

Imagina a minha reação ao ouvir isso. Fiquei completamente envergonhada e, claro, preocupada, porque a justificativa dela foi real e humilhante. Não me acho capaz de dirigir e, ao mesmo tempo, sinto que preciso, especialmente depois desse tapa dado por uma criança de 12 anos.

Essa questão já vem se prolongando por muito tempo, então levei para a terapia, pois agora tenho duas pequenas julgadoras que se inspiram em mim.

Não posso permitir que elas acreditem nessas minhas crenças!

Durante minha sessão de lamentos, choros e culpa, minha psicóloga me perguntou quem era minha referência, quem era a mulher da minha família que dirigia, que eu vi dirigindo. E eu não tenho.

Então, ela disse: “Você precisa encarar mais esse desafio de ser a primeira. De não ter referência e se tornar referência.”

Ser a primeira a quebrar barreiras, a começar e recomeçar… Romper o ciclo do trabalho doméstico, ser a primeira a entrar na faculdade, a fazer especialização, a trabalhar em uma grande organização, a ter cargo de liderança… a primeira, a primeira, a primeira…

As políticas públicas dos últimos 20 anos permitiram que muitas pessoas negras e de condições sociais desfavoráveis tivessem acesso ao ensino superior e, a partir disso, a muitas outras oportunidades. Isso possibilitou a formação de uma primeira geração que rompeu com muitos ciclos educacionais, econômicos e sociais.

Fazer parte dessa “primeira geração” é ter a alegria de ser a primeira a abrir novos caminhos, a desafiar expectativas e a mostrar que, sim, é possível.

A alegria de ver os frutos do nosso esforço, de perceber que o que antes parecia impossível agora é a nossa realidade, me fortalece e me motiva a continuar. Ser a primeira nos permite viver momentos de profunda felicidade ao perceber que estamos criando um legado, pavimentando um caminho para que outros possam seguir.

Entretanto, essa alegria vem acompanhada de um peso significativo. Sinto uma necessidade moral e histórica de ser um exemplo, de ter que acertar, não apenas por mim, mas por todas as gerações que me precederam. É uma pressão esmagadora, como se eu estivesse constantemente provando meu valor e carregando a obrigação de manter essa história viva. É exaustivo, traz medo, tristeza, dúvidas e arrependimentos.

Mas, ao refletir sobre o início da minha trajetória, sobre a história da minha mãe, da minha avó, das minhas tias, percebo que essa responsabilidade é o que me impulsiona, o que me dá forças para continuar sabendo que estou ajudando a construir algo maior do que eu mesma.

Enquanto escrevo, lembro de Audre Lorde, que fala da importância de romper o silêncio e agir. No livro “Irmã Outsider“, ela fala sobre a importância de transformar o silêncio em ação e palavras. Ela nos lembra que é fundamental que mulheres como nós ocupem espaços e compartilhem suas histórias, não só pelas nossas conquistas, mas também por todas aquelas que não tiveram as mesmas oportunidades.

Nossa trajetória, muitas vezes solitária, árdua, cansativa e cheia de pressões internas, abre portas para quem vem depois. E é aí que reside a força de ser a primeira – a coragem de caminhar por onde ninguém antes trilhou, de fazer diferente, de não apenas seguir o que nos foi ensinado, mas de construir novas rotas e possibilidades.

Se dirigir é o próximo desafio que preciso enfrentar, então que assim seja. Não se trata apenas de conquistar mais uma habilidade, mas de continuar rompendo barreiras, de ser um exemplo vivo para minhas filhas de que não importa quantas vezes sejamos as primeiras, mas lembrar do impacto positivo que é continuar carregando a chama daqueles que vieram antes de nós e, ao mesmo tempo, acendendo novas luzes para iluminar o caminho de quem ainda está por vir.

*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP

Foto: RDNE Stock Project/Pexels

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