Até que enfim, vai clarear a família!

Até que enfim, vai clarear a família!
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A família tem papel fundamental na luta antirracista ou na perpetuação de práticas racistas

Por Fabiana Conceição*

Estava na fila de um supermercado quando uma mulher na minha frente recebeu uma mensagem. Ela comemorou feliz a chegada de mais uma criança na família. Em seguida, compartilhou com a amiga que estava ao lado a foto da criança recém-nascida e comentou:

Menina! Nasceu branco, branco! Chegou pra dar uma clareada na família!”.

A amiga olhou a imagem no aparelho celular e rebateu: “Vai vendo! Olha o bico do peito: é escuro! Quando crescer, ele vai escurecer! E muito!”.

Em seguida, mandaram um áudio para mãe da criança parabenizando e ressaltando o tom de pele do bebê.

Ver esta cena me trouxe vários gatilhos porque essas falas eu ouvi muito na minha infância. Ser uma criança negra, criada em uma família interracial, com forte influência do racismo e dos padrões de beleza da branquitude, me gerou dores e sentimentos de preterição que só com muita terapia foi se resolvendo ao longo dos anos.

Lembro quando meu irmão nasceu, fruto do relacionamento de minha mãe com um homem branco. Ele nasceu com a pele e os olhos bem claros e cabelos bem lisos e brilhantes. Um bebê “angelical”. Sua chegada da maternidade foi um acontecimento na rua, as pessoas elogiavam a cor do bebê e comparavam com outra criança, também filho de mãe negra com pai branco e que não nasceu com a pele tão clara. A resposta para esse fato era que a minha mãe tinha uma “barriga limpa” e a da outra mulher era uma “barriga suja”.

Eu lembro que, com 7 anos, ficava pensando por que, na minha vez, a barriga da minha mãe não foi limpa? A culpa era a minha pele que sujou sua barriga?

E assim como acontecia na minha família, acontecia em todo o bairro, quando uma criança nascia, as perguntas se repetiam: “será que esse cabelo vai continuar liso assim?”; “Ele vai ficar preto, olha o bico do peito! Olha a orelha desse menino!”; “Eita! Essa vai usar chapinha logo! Olha o cabelo de bombril!”; “Coloca um pregador no nariz dessa criança enquanto a cartilagem está mole para ver se dá uma ‘afilada’ no nariz!”.

Ressalto que o objetivo desse papo não é colocar pai, mãe ou qualquer outro membro familiar como vilão, até porque eles foram criados dentro de uma estrutura racista e, assim, reproduziram e ainda podem reproduzir o ideal de estética perfeita, construído muito antes dos cinco séculos que tem nosso país.

O que quero construir com vocês é uma reflexão a partir dos exemplos mencionados anteriormente, que ocorreram há mais de três décadas e que ainda fazem parte das nossas vivências familiares e sociais. Apesar dos avanços na pauta antirracista, a estrutura racista em que estamos inseridos influencia as pessoas a pensarem e criarem expectativas sobre a aparência de uma criança ainda durante  a gestação, e isso nos leva a questionar qual é o papel da família na construção de uma educação antirracista?

Outro dia, uma colega me contou que chamou a atenção de um amigo na praia por uma fala machista, a qual ele retrucou, dizendo para ela “relaxar”, porque estavam na praia! Minha colega, então, respondeu dizendo que não existe lugar para corrigir e se posicionar contra as discriminações. E eu concordo plenamente, pois precisamos criar o constrangimento pedagógico nas reuniões familiares, de amigos, nos grupos de aplicativos de mensagens, identificando, combatendo e elevando o nível de consciência dos nossos sobre falas e comportamentos discriminatórios e  sobre o impacto e consequências para a vida das pessoas.

A Elizabeth Hordge-Freeman, autora do livro “A cor do amor”, diz que o lar pode ser um lugar onde está o amor, mas também onde pode estar a dor.

Que lugar sua família tem proporcionado aos membros e aos amigos de pele negra? É um lugar de amor, de conforto e segurança psicológica? Todos se sentem respeitados, acolhidos? Vocês combatem os elogios estéticos que reforçam estereótipos?

Sei que não é fácil, mas precisamos começar de algum lugar e se você acredita que família é onde há amor, respeito e afeto, sem dúvidas, esses   sentimentos não combinam com nenhum  tipo de discriminação.

*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP

Fabiana Conceição
Colunista VSP

Baiana, mulher negra, mãe de Janaína e Dandara, Fabiana é pedagoga com especialização em psicologia organizacional e diversidade e inclusão e tem pós em Gestão de Projetos. Pesquisadora e palestrante sobre o tema Racismo e Preconceito, é educadora antirracista. É ainda especialista em desenvolvimento de talentos e diversidade, equidade e inclusão na Talento Incluir.

Foto: Olia Danilevich/Pexels

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