Racismo Ambiental – Parte 2
Dos motivos da definição, passando pela contextualização histórica do termo Racismo Ambiental, até chegar à atualidade brasileira e a impunidade que impera frente aos atos de violência racial.
Já vimos na parte 1 que o Racismo Ambiental é definido como “as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras comunidades, discriminadas por sua ‘raça’, origem ou cor”.
É bastante comum encontrarmos artigos ou mesmo falas nos quais pesquisadores utilizam como base essa definição, mas ao fazê-lo trocam o termo “vulnerabilizados” por vulneráveis, sem se dar conta do quanto o uso do primeiro é fundamental para a discussão sobre Racismo Ambiental. Afirmar que esses povos e comunidades são “vulneráveis” equivale a ‘naturalizar’ de alguma forma as injustiças que contra eles são praticadas. Os efeitos abjetos das ações que os prejudicam seriam, então, mera consequência das lamentáveis condições de existência do grupo? Das suas ‘fragilidades’- genéticas, biológicas ou o quer que valha?
Sabe-se que essa pretensa ‘vulnerabilidade’ foi construída ao longo de décadas, de séculos; que ela continua a ser forjada e realimentada diariamente, Brasil afora, até mesmo com aspectos que podemos considerar reais tentativas de etnocídio. Classificar essas populações como “vulneráveis” é o equivalente a utilizar o termo “escravos” em lugar de “escravizados”: uma diferença em nada sutil e que não deixa de representar uma quase legitimação para os crimes contra elas perpetrados.
Quando aqui chegaram, os colonizadores queriam os indígenas para trabalhar; as indígenas, para trabalho e sexo. No seu catolicismo de conquistadores, sequer reconheciam neles uma alma; para todos os efeitos, eram animais. O mesmo aconteceria cem anos depois com os escravizados trazidos da África: entre eles e um cavalo, era o equino que merecia melhor tratamento, como narrou o Padre Antonil em 1711:
“No Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessárias três letras P a saber, Pau, Pão e Pano. (…) Alguns senhores fazem mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido, e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor, sela e freio dourado.”
Chegamos ao século XX com uma pseudo “libertação dos escravos”, uma ‘libertação’ sui generis, na qual africanos e seus descendentes foram sumariamente postos no meio das ruas, sem qualquer direito. Enquanto seus antigos senhores eram indenizados por perdê-los, eles não só nada recebiam para começar a nova vida de ‘libertos’, como era-lhes legalmente inviabilizada a compra de terra para se instalarem, caso tivessem dinheiro para isso.
O cenário do início do século passado nos revela um Brasil teoricamente sem escravizados, mas portador de uma desigualdade monstruosa: para os brancos, tudo, de latifúndios a comércios, de faculdades a estudos na Europa; para indígenas e negros, quando muito o trabalho no campo, em geral ainda como semi-escravizados, ou os cortiços nas cidades. Raramente alfabetizados, eram perseguidos pela polícia, tratados como vagabundos e logo, no campo e nas cidades, substituídos por migrantes europeus para “melhorar a raça” nas políticas de embranquecimento.
Ao longo dos 100 últimos anos muita coisa melhorou, é verdade, sempre como resultado de muita luta. Conquista de ações afirmativas. Indígenas e afrodescendentes vêm chegando às universidades e a alguns cargos públicos, mas em quantidades que, embora configurem vitórias, são ridiculamente pequenas, se considerarmos que a maioria da população brasileira é negra, cerca de 56% de acordo com as estatísticas oficiais (IBGE).
Acontece que o racismo permaneceu profundamente entranhado na nossa cultura. Não importa que a realidade aponte ser raro alguém dentre nós que tenha apenas sangue europeu nas veias. Culturalmente, grande parte dos ditos brancos brasileiros se considera de alguma forma superior. Entendem negros como trabalhadores braçais, que devem estar a postos para servi-los; consideram o indígena um inútil preguiçoso, que ocupa territórios que precisam ser deles libertados e entregues ao capital e ao desenvolvimento. E essa visão se estende às outras populações tradicionais, como ribeirinhos, pescadores, camponeses, e tantos outros.
Nesse cenário em que o racismo estrutural predomina e que o preconceito é naturalizado por grande parte da população, o racismo ambiental é igualmente algo que não preocupa. Ao contrário, na maioria das vezes é facilmente ‘justificável’ e assimilável, em outras palavras, é cômodo.
Aliás, é necessário considerarmos ainda a questão “origem”, no que toca ao racismo (e ao Racismo Ambiental) entre nós. Em grande parte do Sul/Sudeste, mas também no Centro-Oeste, nordestinos e nortistas são igualmente vistos e tratados como ‘não brancos’. Não é sem motivo que, além dos negros, são principalmente eles que habitam as grandes favelas e periferias inóspitas das nossas grandes cidades, para onde foram de alguma forma expulsos. E isso se dá ao ponto de São Paulo merecer o epíteto de maior cidade nordestina fora do Nordeste, por mais que isso desagrade os moradores dos ‘jardins’ e os ‘empreendedores’ da avenida Paulista.
Desnecessário dizer que o Racismo Ambiental é, acima de tudo, um instrumento de valor inestimável para o capital e que vem merecendo tratamento especial por parte da barbárie neoliberal. Ou enfatizar que, desde o golpe de 2016, essas populações – povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, no campo, e negras, negros e nordestinos moradores de comunidades urbanas – vêm sendo mais que nunca discriminadas, sacrificadas, assassinadas. Se há leis que deveriam protegê-los, do famoso capítulo “Dos Índios” da nossa Constituição a estatutos e tratados internacionais, inclusive com caráter supra-legais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a verdade é que cada vez mais eles são ignorados, o que vem levando o País até mesmo a ser interpelado internacionalmente.
A luta contra o Racismo Ambiental entre nós envolve uma questão de fundo: o território. É ele, acima de tudo, que está em disputa quando o arco do desmatamento avança cada vez mais, recriado nos matopibas do agronegócio; quando falsos garimpeiros ou mineradoras desmatam, revolvem as terras, afogam nascentes, contaminam rios, constroem suas barragens envenenadas e suas montanhas de rejeitos; ou quando grandes projetos governamentais demarcam seus percursos e suas extensões. No caminho para esse ‘progresso’, junto com as matas, a terra e as águas, são igualmente revolvidos, contaminados e sumariamente deslocados, quando não executados, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Flora e fauna juntos, o Cerrado, a Amazônia e, agora, até mesmo o Pantanal desaparecendo.
Alijados de seu território, muitos não sobrevivem. E isso não diz respeito apenas aos povos indígenas, na maioria ainda profundamente dependentes de sua relação com a natureza. Belo Monte foi particularmente impiedosa também com os ribeirinhos, por exemplo, lançando-os em conjuntos habitacionais inumanos, construídos na aridez de bairros onde a distância do rio – sua ligação maior com o mundo – condena-os a serem ‘nadas’: sem profissão, sem meios de vivenciar seus conhecimentos, sem condições de sentirem e vivenciares seus direitos de dignidade, de ser gente. Em Alcântara, situação semelhante já aconteceu e ameaça acontecer de novo com quilombolas, expulsos da costa e alijados de sua ligação com o mar, enquanto o Brasil oferece magnanimamente boa parte do território aos Estados Unidos.
Assim como os moradores das favelas e periferias das grandes cidades, muitos dos quais em algum momento expulsos dos seus territórios de origem. Novamente, aqui estão eles, ainda buscando o seu espaço, o seu ‘território’, o direito que a própria Constituição lhes reserva à moradia com dignidade, mas que os ‘detentores do Poder’ não respeitam. São, isso sim, invadidos por novas agressões, como lixões e indústrias poluentes, ou novamente expulsos à medida em que a cidade cresce, e a especulação imobiliária elege novos limites para os seus interesses.
É do geografo Milton Santos, a frase:
“O território é onde vivem, trabalham, sofrem e sonham todos os brasileiros. Ele é, também, o repositório final de todas as ações e de todas as relações, o lugar geográfico comum dos poucos que sempre lucram e dos muitos perdedores renitentes, para quem o dinheiro globalizado – aqui denominado ‘real’ – já não é um sonho, mas um pesadelo”.
Atualidade
No que se refere ao meio-ambiente, o que o atual governo pratica pode ser chamado de necroambientalismo, seguindo as determinações de um capitalismo de barbárie. Não estamos sozinhos no que se refere a necropolíticas, mas ignoro se em algum outro país a falta de pudor e a desfaçatez de atos e falas de caráter neofacista fazem parte do cotidiano como aqui entre nós. Falar sobre Racismo Ambiental e denunciar sua prática é, pois, uma obrigação.
Nos dias que antecederam o segundo turno das eleições presidenciais, há dois anos, servidores do ICMBio, do Ibama e da Funai trocavam mensagens tensas. Informavam uns aos outros que suas famílias já estavam a caminho de outros estados, e que já estavam preparados para, dependendo do resultado da votação, deixar seus postos e partir no intervalo das 48 horas seguintes. Muitas e muitos assim o fizeram, deixando para trás comunidades agora desassistidas e escritórios vazios. Buscavam se preservar e sobreviver, ante a verdadeira avalanche de ameaças diretas que vinham recebendo pelos mais diferentes meios, sobre “novos tempos” que estavam chegando. E agiram certo.
O primeiro presidente do Instituto Chico Mendes nomeado pelo atual governo ficou três meses no cargo. Enviou carta de demissão após participar de evento no Parque Nacional da Lagoa do Peixe, Rio Grande do Sul, no qual viu e ouviu o ocupante do Ministério do Meio Ambiente ameaçar publicamente os servidores do órgão. Foi substituído por um coronel da Polícia Militar de São Paulo, numa atitude que se repetiria ao longo dos últimos meses.
Desde então, ICMBio e Ibama foram cada vez mais esvaziados em termos orçamentários, tiveram suas chefias e coordenações técnicas substituídas por PMs e testemunharam o exílio de quadros altamente especializados para locais remotos, onde todo o conhecimento por eles acumulados seria inútil.
Punições e proibições (inclusive impedindo entrevistas e divulgação de informações por parte de especialistas e de chefias), desautorizações e ameaças foram gradativamente colaborando também para que os servidores cada vez menos se vissem em condições de cumprir suas funções. E, se o quadro institucional era esse, por que a prática daqueles que os órgãos deveriam fiscalizar deveria ser diferente?
Na região Norte, principalmente, funcionários do Ibama e do ICMBio veriam várias vezes as ameaças se tornarem reais, cercados e expulsos por capangas de grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros tantos, e obrigados a abandonar máquinas e equipamentos que haviam apreendido. Eventualmente, as intimidações chegaram ao ponto de quase serem queimados vivos dentro de seus veículos de trabalho.
Em agosto de 2019, à frente de uma ação que envolvia também agentes federais, o coordenador de Operações de Fiscalização do Ibama e demais servidores foram recebidos a tiros por garimpeiros na Terra Indígena Ituna Itatá, entre os municípios de Altamira e Senador José Porfírio, no Pará.
Embora formalmente em outro Ministério, o quadro não seria muito diferente na Funai, exceto por um ‘detalhe’: no início de setembro de 2019, o indigenista Maxciel Pereira dos Santos foi assassinado na frente de seus familiares no município de Tabatinga, Pará. Nesse caso, as ameaças se concretizaram no seu nível máximo.
Nesse faroeste que acontece principalmente na região Norte, é a impunidade que grassa, a conivência, o cinismo, a desumanização.
As investigações sobre o chamado “Dia do Fogo”, de 10 de agosto de 2019, deram em nada, apesar de todo o escândalo internacional. O fato de que o Ministério Público Federal havia comunicado ao Ibama, três dias antes, que o atentado estava sendo acertado por whatsapp – ou que a resposta foi de que nada poderiam fazer, por “falta de segurança para as equipes”, já não podiam contar sequer com o apoio da Força Nacional – parece sequer ter sido levado em consideração. Como podemos então ficar surpresos este ano com a repetição dos incêndios criminosos na Amazônia e no Pantanal?
Aliás, como pensar em punição, se em grande parte das chacinas, como a de Pau d’Arco, são policiais os executores? Se na intimidação a povos indígenas, quilombolas, pescadores, sem terras, ribeirinhos e outras comunidades aqueles que deveriam defendê-los e investigar quem os ataca muitas vezes aceitam de bom grado o papel de capangas de seus opressores?
Informações editadas de textos publicados originalmente em: https://racismoambiental.net.br/
Imagem em destaque: desmatamento
Foto: domínio público