Espelho era sinônimo de angústia: a gordofobia começa no próprio corpo
“Ao longo da minha primeira década de vida, eu só usava calça de moletom”
Por Natalia Timerman
Fui uma criança gorda o suficiente para que as outras crianças notassem. Antes ainda: fui uma criança gorda o suficiente para que minha mãe notasse
Nossa casa era dietética: horários, verduras, restrições. O armário de guloseimas da casa de uma amiga era o paraíso proibido; eu salivava de vontade e inveja. Apesar dos esforços em sentido contrário, a largura do meu corpo só aumentava. Espelho era sinônimo de angústia.
Ao longo da primeira década de vida, eu só usava calça de moletom. Na entrada da adolescência, comecei a entender que havia um código de vestuário ao qual eu precisava me adequar. Emagreci pela primeira vez, a primeira de muitas. Mas não durava muito. Nunca durou. Em poucos meses, a calça jeans voltava a emperrar nas minhas coxas: eu estava errada, o meu corpo estava errado, o tecido apertando a carne me dizia. Jamais cogitei que o problema pudesse ser o número da roupa.
Problema que não se resumia ao fato de eu ser mulher, ainda que, claro, ser mulher piorasse a situação. Meu pai era gordo. Eu não conseguia entender como minha mãe era casada com ele; como minhas tias eram casadas com meus tios. Segundo o mapa do mundo que me chegava por todos os lados, ser gordo significava ser indigno de amor, como se só um corpo magro pudesse ser amado. Como se bastasse que eu fosse magra para que o amor, enfim, chegasse. Eu me surpreendia, nos períodos que se seguiam a quaisquer das dietas que fiz, com a dolorosa constatação de que não, as coisas não eram bem assim.
Esta não é uma história de superação. Ainda que meu corpo funcione tão bem, que me leve para caminhar, para correr, que me dê prazer, me sacie; ainda que seja através de seus sentidos que o mundo me chegue a cada instante; ainda que ele receba a beleza com arrepios, ainda que ele saiba abraçar e gozar; ainda que ele seja, o meu corpo, a concretude cotidiana da minha vida, é muitas vezes difícil aceitar, entranhadamente difícil, a sua especificidade, as suas marcas, até sua beleza própria.
Para os que atribuem saúde exclusivamente à magreza, meu pai morreu magro porque teve câncer.
Termino com uma cena: a minha cama, no puerpério do meu segundo filho, o corpo flácido, imenso, azedo de leite, com as dobras vazias que o gestar deixou. O enlace desejante e incompreensível do meu companheiro. O amor, que se sente no corpo, com o corpo, pelo corpo, apesar do corpo.
Publicado originalmente em UniversaUOL
Foto: Andres Ayrton/Pexels
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