Como pode? Mulher gorda pode!
Na coluna de hoje sobre gordofobia, a apresentação da tese de doutorado que abriu caminhos e encurtou distâncias para muitas pessoas que com seus corpos gordos procuravam um norte
Por Malu Jimenez
Há anos, já perdi a conta de quantos, venho experimentando uma exclusão sob a mirada vigilante e julgadora de pessoas dentro do meu convívio social. Um olhar diferenciado que me diz coisas, de repulsa, engano, reprovação, aversão, nojo, medo e muitos outros diversos sentimentos expressados, apenas com o afrontar através dos olhos e, algumas vezes, com a negação da cabeça, mas principalmente com a mirada de censura.
Anos esses difíceis de entender o que esse olhar significava e por que se repetia em diversas ocasiões e com pessoas distintas, sabia que era familiar e que não era um olhar de aprovação e carinho, muito pelo contrário, tinha algo de errado em mim, comigo, e por esse motivo ele aparecia. Olhar esse que me remetia à reprovação na infância quando fazia coisas que minha mãe não permitia, como comer com as mãos, ou subir na escada sozinha, brigar com minha irmã. Estava ali, entalhado no meu ser, me remetia à mudança de comportamento e me rasgava por dentro.
Toda essa sensação de inadequação reverberou na minha vida de diversas maneiras, infelizmente nenhuma positiva, até que, há alguns meses, comecei a perceber que esse comportamento externo, repetitivo durante o decorrer da minha vida, tinha uma ligação inerente ao meu corpo gordo. Mas, muito mais que com meu corpo gordo, era como meu comportamento não estivesse adequado a esse corpo maior.
Dessa reflexão, numa conversa com uma amiga, dessas que são fada, madrinha e palhaça, tudo ao mesmo tempo – agora, minha “falhaça” — , acabou saindo de dentro de nós a expressão: como pode? Sim, como pode essa gorda não querer fazer regime? Como pode essa gorda ser casada? Como pode essa gorda fazer doutorado? Como pode essa gorda estar alegre? Como pode essa gorda fazer teatro? Como pode essa gorda se autodeclarar gorda e isso não mostrar nenhum sofrimento? Como pode essa gorda falar de alimentação saudável? Como pode essa gorda querer usar biquíni? Como pode essa gorda não ser zoada por seus alunos? Como pode essa gorda falar com o motorista do ônibus que ela não cabe na catraca e rir disso? Como pode?
Essa expressão me empoderou de tal maneira que, hoje, quando alguém me olha com aquele olhar de reprovação, e que há um tempo atrás acabava comigo e me fazia sentir culpa por algo que nem sabia muito bem o que era, ficava mal e me sentia muito inadequada, o patinho feio e gordo da parada, hoje automaticamente me vem à mente: como pode? Sim, eu leio os pensamentos alheios e dou muita risada deles , porque consegui reverter um sentimento horrível em algo criativo e engraçado. Dessa maneira, tenho me sentido muito mais engraçada e minha construção de aceitação achou uma maneira de reverter uma situação de toda uma vida em algo prazeroso.
Muitas das vezes já fico na espera: lá vem o “como pode?”. Poder transformar aquilo que te faz mal em algo criativo vem ao encontro de um trabalho do feminismo de aceitação e entendimento do próprio corpo de muitas maneiras e buscas. Entender que as pessoas que te reprovam e não te aceitam são as pessoas que precisam de ajuda, pois se incomodam com algo que não sabem muito bem por que. Ser gorda e não se suicidar nesse mundo é o maior ato de resistência que eu venho experimentando. Como pode? Mulher gorda pode.
(NÃO ME KAHLO, 2018).
Malu Jimenez é Mestre e Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea, pela Universidade Federal de Mato Grosso. Clique aqui e saiba mais sobre a autora
Foto: Malu Jimenez/ Reprodução Instagram
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