Capoeira é coisa de favelado

Capoeira é coisa de favelado
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A desvalorização do que é popular e o racismo que se aprende na infância

Por Fabiana Conceição*

Minhas filhas fazem capoeira na comunidade onde moramos. Outro dia, uma colega branca foi experimentar a aula e, no dia seguinte, não voltou. Quando perguntamos se ela continuaria, as meninas responderam que não, porque a mãe dela disse que capoeira é coisa de favelado.

Fiquei dias pensando nisso. Porque tem muitas camadas em uma frase só. Tem a desvalorização do que é popular e preto. Tem a hierarquização dos saberes e das práticas. Tem o pacto narcísico da branquitude. Tem a reprodução cotidiana do racismo.

Eita, Fabi, foi longe agora.

Fui mesmo, gente. Porque é no dia a dia que o racismo se alimenta. E quando ele se manifesta nas falas das crianças, a gente sente como se fosse uma perda de futuro. Uma dessas perdas difíceis de nomear, porque parecem pequenas, mas deixam marcas profundas.

Mas deixa eu ir me justificando. A frase “capoeira é coisa de favelado” carrega uma carga simbólica imensa. Ela desqualifica uma prática reconhecida como patrimônio cultural da humanidade, criada por pessoas escravizadas como forma de resistência, sobrevivência e comunicação. Capoeira é arte, luta, canto, ginga, história viva. Mas, para muita gente, ainda é associada à desordem, à marginalidade, à violência. Não importa que seja patrimônio. O que importa, para quem pensa assim, é que veio da favela. E o que vem da favela, do povo preto, do chão da periferia, ainda é visto como sem valor.

Essa é a desvalorização do que é popular e preto. É quando se reduz o valor de uma prática não pelo que ela é, mas por quem a criou. É o desprezo disfarçado de opinião e o preconceito travestido de escolha.

Há também uma ideia profundamente enraizada no nosso país de que existem formas certas de aprender, de educar, de se desenvolver. E essas formas, quase sempre, são brancas, eurocentradas, institucionalizadas. O que vem da oralidade, da roda, do corpo em movimento, da tradição popular, é tratado como informal ou, no máximo, como curiosidade cultural. Quando, na verdade, é conhecimento. Estruturado, transmitido por gerações, sustentado por valores, disciplina e coletividade.

E uma reflexão interessante que gostaria que vocês fizessem é que, mesmo quando se vive sob as mesmas condições materiais, mesmo morando na mesma comunidade, há um esforço, muitas vezes inconsciente, de manter a branquitude como sinal de superioridade simbólica. A menina branca mora aqui. Frequenta os mesmos espaços que as outras crianças. Mas aprendeu que capoeira não é pra ela. Não porque não gostou. Mas porque, segundo a lógica que lhe foi ensinada, aquilo é de outro tipo de gente.

A psicóloga social Lia Vainer Schucman, que estuda como se constrói a identidade branca no Brasil, mostra em suas pesquisas que pessoas brancas, inclusive aquelas em situação de vulnerabilidade econômica, desenvolvem mecanismos para se diferenciar de pessoas negras. Mesmo vivendo no mesmo bairro, na mesma escola, na mesma rua. Essa separação simbólica acontece não pelo que se tem, mas por quem se é. Por aquilo que se recusa a parecer. É a branquitude se reafirmando não através de posses, mas da negação: a negação de práticas negras, de espaços racializados, de qualquer sinal de pertencimento ao que é considerado outro.

E esse exemplo que trouxe mostra como essa distinção é aprendida cedo e está nas escolhas do dia a dia. Está em dizer que capoeira não é pra sua filha, não porque ela não gostou, mas porque é coisa de favelado. Está na tentativa de manter intacta uma ideia de superioridade, mesmo quando a realidade concreta mostra que todos estão no mesmo chão. É aí que o racismo estrutural opera, porque não precisa de muros quando tem discursos. Ele se reorganiza, se adapta, mas continua garantindo quem pode pertencer e quem deve ser evitado.

E o triste disso tudo? As crianças aprendem. Aprendem com o que a gente diz, mas também com o que deixamos de dizer. Aprendem com os gestos, com os silêncios, com os olhares que evitam, com os convites que não se fazem. Quando uma criança ouve que capoeira é coisa de favelado, ela aprende que aquilo que vem da sua cultura, da sua vizinhança, da sua comunidade, não vale. E, pra mim, mais triste ainda é as crianças pretas ouvirem e passarem a acreditar que suas raízes não têm valor e, consequentemente, que elas não têm.

Por isso, essa não é só uma história sobre capoeira. É uma história sobre o que a gente valoriza, sobre o que a gente repele, sobre o que a gente ensina sem perceber. É sobre o futuro que estamos cultivando ou adiando. É sobre reconhecer que a mudança não virá só de grandes discursos ou de políticas públicas bem intencionadas. Ela começa no cotidiano. Nas falas que a gente corrige. Nas escolhas que defende. Nas experiências que permite que nossos filhos vivam ou não.

Capoeira é, sim, coisa de favelado. De gente preta. De povo resistente. E isso é motivo de orgulho. Capoeira faz parte da construção do nosso país, da nossa história, da nossa cultura viva. É um patrimônio que não pode ser marginalizado. Tem que ser celebrado, vivido, partilhado. O que não pode mais ser coisa de criança é a repetição de um racismo aprendido em silêncio e perpetuado sem reflexão.

*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP

Foto: Priscila Almeida/Pexels

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