Rainha do Milho
As festas juninas e a experiência do racismo no ambiente escolar
Por Fabiana Conceição*
No mês de junho acontece o evento mais importante da região nordeste: o São João. Costumo dizer que a festa junina é o Natal nordestino, pois há uma grande mobilização nas famílias, no comércio e na cultura local.
As pessoas compram roupas novas para o período junino, decoram as casas e ruas com bandeirolas e fazem as comidas típicas do período. Para se ter uma ideia, só o estado da Bahia prevê para este ano uma arrecadação de R$1,3 bilhão no período.
É claro que um evento tão tradicional também é inserido no ambiente escolar, onde se organizam quadrilhas e apresentações. Na minha época escolar, havia até concursos para escolher a rainha do milho e a noiva da festa!
Eu passei as primeiras séries escolares vendo todo ano as mesmas meninas serem eleitas no concurso para rainha do milho e a noiva: uma criança loira sempre era a rainha do milho e a menina branca de cabelos pretos, a noiva.
Para a criança negra restava o papel da mulher que aparecia grávida e tentava atrapalhar o casamento na roça.
A decoração das portas da sala tinha sempre um casal de bonecos caipiras feitos com EVA e eles sempre eram brancos – a boneca sempre loira!
E, assim, apesar de estar em uma escola pública, com número maior de crianças negras no ambiente, eu me sentia em um não lugar. O espaço escolar tinha referências eurocêntricas, onde todos os grandes feitos históricos, os heróis, as rainhas, os grandes pensadores eram pessoas brancas.
A escola é uma reprodução da estrutura de opressão que vivemos na sociedade, e isso se refletia quando eu via que em sua maioria os docentes eram brancos, a diretora era branca e apenas a Lurdinha, a merendeira e seu Zé, o porteiro, eram negros. Não que isso fosse um problema, pelo contrário, era neles que me agarrava quando passava por episódios de racismo feitos por outras crianças.
Eu não me via nesse espaço e sentia o desconforto no ar… Sentia que minha cor incomodava, que eu destoava de tudo: do corpo docente branco e de toda decoração do ambiente que sempre era representada por figuras de pessoas brancas e destoava das imagens dos livros didáticos, onde pessoas da minha cor não eram heróis e sempre apareciam como pessoas escravizadas, analfabetas e preguiçosas.
Essas experiências vividas por mim e pela maioria das crianças negras promoveram a construção de imagens negativas que, sem dúvida, impactaram na nossa autoestima e na dificuldade de uma construção positiva sobre nós mesmos.
A ativista Cida Bento diz que a identidade de um indivíduo é construída por meio do corpo e pela convivência com outras pessoas (família, comunidade e escola) e que, por meio do olhar, do toque, da voz e dos gestos dessas outras pessoas, a criança vai tomando consciência do seu corpo e do valor atribuído a ele.
O triste é que esse olhar, o toque e os gestos não vieram para mim nem para muitas outras crianças negras… Não havia sensibilidade para pensar que todo ano eram sempre as mesmas crianças a serem a rainha do milho, as que eram incentivadas ao protagonismo (e hoje a sociedade, o ambiente organizacional nos exigem, ainda, esse perfil protagonista!)
Mensurar os efeitos que o racismo teve no desenvolvimento infantil de muitas crianças pretas não é simples, mas, quando você ouvir falar que representatividade importa, é sobre isso, porque se uma criança negra não se vir representada nos desenhos que assiste, não se vir na sua comunidade escolar, nos seus livros, na sua vizinhança, ela vai ter muito mais dificuldade para pensar, sonhar e projetar um futuro baseado no que não vê.
Ah, eu ressignifiquei a festa junina porque é minha festa preferida e hoje me realizo celebrando muito o São João, comprando os vestidos caipiras mais lindos para minhas filhas, dignos de uma rainha do milho, digno de uma criança que merece ser feliz, merece ser celebrada. Assim eu me celebro também.
*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP
Fabiana Conceição
Colunista VSP
Baiana, mulher negra, mãe de Janaína e Dandara, Fabiana é pedagoga com especialização em psicologia organizacional e diversidade e inclusão e tem pós em Gestão de Projetos. Pesquisadora e palestrante sobre o tema Racismo e Preconceito, é educadora antirracista. É ainda especialista em desenvolvimento de talentos e diversidade, equidade e inclusão na Talento Incluir.
Foto: Fabiana Conceição/Arquivo Pessoal
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