Há 137 anos tentando sair do 14 de maio

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A abolição assinou a liberdade, mas não entregou os direitos

Por Fabiana Conceição*

No último dia 13 de maio, completamos 137 anos da assinatura da Lei Áurea. E meu convite hoje é pra gente refletir um pouco sobre o que mudou pra população negra no dia seguinte à abolição.

Nosso país escravizou pessoas pretas por 388 anos. Durante quase quatro séculos, pessoas pretas trazidas do continente africano perdiam seus nomes, sua identidade, sua história. Foram forçadas a trabalhar exaustivamente até a morte, sem nenhum direito básico, submetidas a leis que proibiam o acesso à educação e ao direito à terra. Enquanto isso, pessoas brancas recebiam terras, estudavam, educavam seus filhos, colocavam eles pra estudar, enriqueciam absurdamente às custas do trabalho escravo. Construíam fortunas, prestígio, influência  e consolidaram ainda mais poder.

Então, em um belo 13 de maio ensolarado, a princesa resolveu ser bondosa e libertou as pessoas escravizadas. Ufa! Obrigada, princesa… Mas e o dia seguinte? O que aconteceu no 14 de maio?

Depois de 388 anos servindo, sem moradia, sem bens, sem educação, pra onde essas pessoas foram e como sobreviveram? Foram jogadas à própria sorte. Buscaram moradias em lugares distantes, sem acesso a nenhuma estrutura mínima. Construíram abrigos com o que tinham e  assim foram se formando os morros e favelas. E o Estado não chegou com suporte ao saneamento básico, nem com saúde, nem com moradia digna.

Nestes anos de abolição, a gente segue — como pessoas pretas — tentando lutar pelo mínimo. Foram 388 anos com pessoas brancas representando os ideais de beleza, de saúde, de riqueza, de autoridade. E é sobre-humano achar que isso se reverte em 137 anos.

Nenhuma força de vontade individual dá conta de virar esse jogo sozinha. Até porque, quem teve o privilégio por 388 anos dificilmente quer abrir mão dele. E abrir mão, minha gente, significa rever privilégios que foram naturalizados como se fossem direitos. Quem foi servido por quase quatro séculos, sem pagar por isso, não vai querer uma educação igualitária. Não vai aceitar a desapropriação de terras improdutivas. Muito menos dividir os espaços de decisão e privilégio.

E toda essa estrutura que está aí, construída ao longo dos 388 anos, não foi acaso. Não foi falta de planejamento. Foi política pública. Foi projeto. A política de embranquecimento, por exemplo, incentivou a vinda de pessoas brancas da Europa oferecendo terra, benefícios e oportunidades pra reconstruírem suas vidas com o mínimo de dignidade.

E ainda ouvimos argumentos rasos comparando os imigrantes europeus e os povos africanos. Pessoas pretas ainda são vistas como preguiçosas, como se não quisessem evoluir, como se não se esforçassem. Enquanto isso, os imigrantes europeus seguem sendo retratados como quem “veio com a mão na frente e outra atrás” e construiu tudo com trabalho e força de vontade.

Não tenho dúvida nenhuma de que eles trabalharam muito. A gente também. Até a morte, pra ser mais exata. E sem direito de reconstruir nossa história com nome, origem, memória e dignidade.

Nesses 137 anos da falsa liberdade, ainda engatinhamos. Ainda temos que explicar que o racismo existe. Que meritocracia é uma falácia num país erguido sobre as bases da desigualdade e que o racismo estrutural define as oportunidades, os acessos, os caminhos.

Os últimos 137 anos não compensam os 388 de escravidão. Ainda temos um caminho longo pela frente. E, pra avançar de verdade, a gente precisa reconhecer que esses quase quatro séculos foram parte de um projeto sistemático de genocídio contra a população negra. E entender, de uma vez por todas, que não existe reparação sem responsabilização.

E a responsabilidade é de quem arquitetou, lucrou e sustentou essa estrutura até aqui. Por isso, políticas públicas não são favores pra população negra. São o mínimo que o Estado deve garantir diante da tragédia que ele mesmo construiu, sustentou e perpetuo.

O 14 de maio, como ideário de liberdade, ainda não chegou. No fim, já são mais de 500 anos vivendo neste país tentando ser e estar — livres, vivos, reconhecidos, respeitados, com dignidade e igualdade de direitos. Esse ser e esse ter, que a gente luta há séculos para conquistar plenamente. Será que é pedir demais?

*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP

Foto: Brasil de Fato/Site

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