De Yeshua ao acarajé gospel: Fé ou apagamento?
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“A luta contra a intolerância religiosa é, também, uma luta contra o racismo”
Por Fabiana Conceição*
Desde o início do ano, tem uma discussão nas redes sociais sobre a mudança na letra de uma música que mencionava Yemanjá e agora faz referência ao Rei Yeshua.
E entre as críticas que li, uma questiona o direito de expressão e afirma que, se a pessoa tem uma nova denominação religiosa, ela não é obrigada a cantar ou saudar o que não reconhece como Deus.
Mas o que é de fato direito à liberdade de expressão e religiosa?
Quero começar essa nossa conversa com uma análise simplista: vocês acham mesmo que trocar apenas um nome e continuar usando a base de um ritmo musical que tem raiz e construção nos elementos das religiões de matriz africana vai reestabelecer e redirecionar as saudações para o Deus de outra denominação religiosa?
A essência não muda com a troca de nomes, minha gente. Alterar um nome não modifica a natureza do ritmo, a história que ele carrega, o contexto cultural e ancestral. Apenas reforça um padrão histórico de apagamento do que é construção do povo preto e de axé.
É usar a arte, a cultura e a religião de um povo historicamente marginalizado e criminalizado para monetizar, demonizar e impor outra fé. Isso não é liberdade de expressão, muito menos religiosa! É desrespeito, apropriação indevida, racismo religioso, intolerância. É um apagamento deliberado.
Sidnei Nogueira, no livro Intolerância Religiosa, diz que o apagamento é um projeto de poder. Desde a colonização, há um esforço contínuo para deslegitimar e marginalizar as religiões afro-brasileiras – seja por meio da criminalização direta, seja por estratégias mais sutis, como a ressignificação forçada de seus símbolos e práticas.
E essas ressignificações só vemos com as religiões de matriz africana. Você já viu alguém pegar uma música de outra denominação religiosa que não seja de matriz africana e trocar o nome da referência religiosa? É comum a substituição dos nomes de alimentos sagrados de outras religiões para atender as novas crenças religiosas das pessoas?
O acarajé, alimento sagrado de Orixá, para satisfazer desejos encaixes na narrativa cristã, tem sido chamado por alguns evangélicos de bolinho de Jesus, ou acarajé gospel.
A capoeira, um legado da resistência de corpos negros contra a escravidão, tem sido chamada de capoeira gospel ou capoeira de Jesus, esvaziando seu contexto político e ancestral e se transformada em exercício aeróbico para louvação de crenças apartadas da origem.
Isso não é liberdade religiosa e não são coincidências.
O racismo religioso e a intolerância religiosa caminham juntos. O primeiro ocorre quando uma fé é perseguida por estar ligada à identidade negra. O segundo, quando há uma hostilidade generalizada contra uma prática religiosa. Ambos sustentam um projeto de poder que elege quem pode cultuar livremente e quem será silenciado.
Usar o nome de um Deus como justificativa para perseguir, apagar e silenciar é uma prática antiga – e instrumentalizada. Se olharmos para a história, veremos que a imposição religiosa sempre foi usada como ferramenta de dominação. O cristianismo foi imposto na colonização, destruindo línguas, culturas e tradições de povos originários e africanos. A igreja teve um papel central na escravização e na justificação da inferiorização dos corpos negros. E hoje, essa estrutura se atualiza, além de criminalizar direta e indiretamente, querem ressignificar até que a origem desapareça.
No ano passado, o Brasil registrou 3.853 violações motivadas por intolerância religiosa – um aumento de mais de 80% em relação ao ano anterior, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Esses ataques não são episódios isolados. São reflexos de um projeto histórico e muito bem estruturado que usa a fé como ferramenta de dominação.
A luta contra a intolerância religiosa é, também, uma luta contra o racismo. É sobre o direito de existir sem ser silenciado, sem ser apagado, sem ter suas memórias ressignificadas para caber na narrativa de quem historicamente oprime.
Respeitar a fé do outro não significa apagá-la para que ela se encaixe na sua. Significa permitir que ela exista, sem modificações, sem apropriações, sem a necessidade de validação ou permissão.
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*O texto produzido pelo autor não reflete, necessariamente, a opinião do Portal VSP
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Fabiana Conceição
Colunista VSP
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Baiana, mulher negra, mãe de Janaína e Dandara, Fabiana é pedagoga com especialização em psicologia organizacional e diversidade e inclusão e tem pós em Gestão de Projetos. Pesquisadora e palestrante sobre o tema Racismo e Preconceito, é educadora antirracista. É ainda especialista em desenvolvimento de talentos e diversidade, equidade e inclusão na Talento Incluir.
Foto em destaque: Acarajé Cristão/Reprodução Internet
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